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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

LIVROS SINOPSE DA REVISTA VEJA parte I

LIVROS SINOPSE DA REVISTA VEJA parte I
A Cabana e O Vendedor de Sonhos
A Evolução das Coisas Úteis de Henry Petroski
A Hora da Guerra
A Mulher de Jerusalém
Absurdidão
Anjos caídos
As Estrelas Descem à Terra
As Horas Podres de Jerônimo Teixeira
Comer, Rezar, Amar
Deu No New York Times
Homem Comum
Legado de Cinzas
Madonna: 50 Anos
Mundo Sem Fim
O Fantasma
O Jogo de Anjo
O Mundo Pós-Americano
O País dos Petralhas
O Santo Sujo
O Seqüestro dos Uruguaios
Os Irmãos Karamázov
Os Sete Chefes do Império Soviético
Satã - Uma Biografia
Vampiro sangue bom


Violentação das idéias
Em O País dos Petralhas, Reinaldo Azevedo, o melhor blogueiro do país, combate à gangue que violenta as idéias e brutaliza a verdade. O livro reúne os melhores textos de Azevedo sobre o petralhismo, publicados em seu blog em VEJA.com desde junho de 2006 e, antes disso, em sua coluna em O Globo.
Alto lá, em nome da lei...Em O País dos Petralhas, Reinaldo Azevedo, o melhor blogueiro do país, conta sua luta diária com a turma da situação.
Um petralha indignado pergunta a Reinaldo Azevedo como ele consegue dormir em paz. Resposta: – Com Stilnox.
E conclui: – Por isso defendo os laboratórios, as patentes e a propriedade intelectual.
Esse é o resumo perfeito de O País dos Petralhas (Record; 337 páginas; 38 reais). O livro reúne os melhores textos de Reinaldo Azevedo sobre o petralhismo, publicados em seu blog em VEJA.com desde junho de 2006 e, antes disso, em sua coluna em O Globo. O que significa "petralha"? Um glossário, no fim do livro, esclarece: "Neologismo criado da fusão das palavras ‘petista’ e ‘metralha’ – dos Irmãos Metralha, sempre de olho na caixa-forte do Tio Patinhas. Um petralha defende o roubo social".
O roubo social é uma disciplina que, praticada pelos operadores do petralhismo entranhados no partido e no setor público, se baseia no – como dizer? – roubo. Pode ser o roubo para eleger um candidato, ou o roubo para enlamear um opositor, ou o roubo para encher as burras de dinheiro. Em geral, tudo isso junto. Para que um petralha possa roubar sem constrangimentos, ele precisa contar com a cumplicidade de outros petralhas, enfronhados na imprensa, na internet, nas salas de aula, nos gabinetes, nos tribunais, nas delegacias, nas rodas de samba. O papel deles é fazer a defesa teórica do banditismo, acobertando todos os crimes cometidos em nome do partido. Esta é a gangue que Reinaldo Azevedo combate: a gangue que violenta as idéias, que corrompe os conceitos, que brutaliza a verdade. Se o Brasil do PT é Patópolis, Reinaldo Azevedo só pode ser o nosso Mickey.
Ele, o camundongo sabido de Dois Córregos, é o melhor blogueiro do país. O termo blogueiro, para quem está acostumado só com a imprensa escrita, pode soar ligeiramente depreciativo. Corrigindo: Reinaldo Azevedo é o melhor articulista do país. É o único capaz de passar com desenvoltura de Robert Musil à egüinha Pocotó, de G.K. Chesterton a Marilena Chaui, de Ortega y Gasset a Marco Aurélio Garcia. Com 900.000 páginas lidas todos os meses, seu blog é também um dos mais populares da internet. O resultado é espantoso: se, num dia, ele indica um filme no Youtube, como aquele sobre a pancadaria da PF em Raposa Serra do Sol, no dia seguinte o filme já contabiliza 18 000 espectadores.
Para nossa sorte (eu, Diogo, sou uma das centenas de milhares de macacas-de-auditório de Reinaldo Azevedo, e entro no blog umas cinco vezes por dia, como a média de seus leitores), o melhor articulista do país é igualmente o mais compulsivo. Reinaldo Azevedo trabalha sem parar. Até a última quarta-feira, seu blog já publicara 14 943 artigos. Dois anos atrás, os médicos abriram uma tampa em seu cocuruto e arrancaram lá de dentro dois hemangiomas ósseos do tamanho de bolas de gude. Três dias depois, no quarto do hospital, ele já estava na frente do computador, fazendo chacota de seu aspecto de golfinho Flipper e de seus tumores benignos – o único produto benigno saído de sua cachola.
Reinaldo Azevedo costuma escrever seu primeiro artigo às 3 da tarde, quando acorda, e o último às 5 e meia da madrugada, quando toma seu comprimido de Stilnox e vai dormir. Ao petralha indignado: Reinaldo Azevedo nunca dorme em paz, ele dorme em guerra. Em guerra contra os petralhas indignados, contra os esquerdopatas, contra os tocadores de tuba, contra o Apedeuta (consulte o glossário de O País dos Petralhas). Isso lhe rende, todos os dias, centenas de mensagens ofensivas. Chamam-no de canceroso, de nazista, de Opus Dei. A primeira triagem dos comentários dos leitores, em que se eliminam todos os insultos, é feita por sua mulher. Ela se chama Lilian, mas os leitores do blog a conhecem como Dona Reinalda. Há também as Reinaldinhas, suas duas filhas, Maria Clara, de 13 anos, e Maria Luíza, de 11.
Apesar de estar sempre em guerra, Reinaldo Azevedo se considera "bastante convencional". O que isso quer dizer? Quer dizer que ele chama "crime de crime, ladrão de ladrão, bandido de bandido". E acrescenta: "No auge de minha esquisitice, defendo o cumprimento da lei". Essa é uma idéia repetida incessantemente ao longo do livro. Para ele, "a impunidade destrói qualquer chance de futuro. Se a lei é cumprida, entra-se numa espiral positiva de direitos e deveres". Por isso ele se bate pelas leis e pelas regras da democracia, da gramática, da lógica, dos bons costumes e da patente dos remédios. No país dos petralhas, o assombroso é ficar do lado da lei.
Trecho de O País dos Petralhas, de Reinaldo Azevedo
A CACHAÇA DOS INTELECTUAIS E A IMPRENSA
A FÁBULA PETISTA E O DEMÔNIO TOTALITÁRIO*
"Tudo o que é bom para o PT é ruim para o Brasil”.Não é a primeira vez que escrevo sobre a frase que mais me rendeu protestos. Até alguns "conservadores" fizeram um muxoxo: "Cheira a preconceito”.E daí? O preconceito também é uma realidade discursiva definida por marés influentes de opinião. Não ter alguns corresponde a reforçar outros. Vejam dom Tomás Balduíno, que trocou a Teologia pela Escatologia da Libertação. Ele acredita que lugar de auto-intitulados sem-terra é quebrando o Parlamento ou tungando propriedade alheia. Opor-se a tal prática seria preconceito.
Um "progressista" tem de estar afinado com os deserdados profissionais dos padres, das ONGs e do Chico Buarque. Os "conservadores" preferem ficar no armário, praticando uma ideologia que não ousa dizer seu nome. Ou vão para a fogueira. A esquerda leva vantagem na guerra de valores. Jornalistas acham normal ter como fonte um ladrão - sobretudo se ele roubar em nome da causa -, mas fogem de um "reacionário" ou "direitista". Supostas maiorias teriam mais direito a preconceitos do que um indivíduo. Com efeito, não existiria totalitarismo sem as massas e suas rebeliões - aprendi com Ortega y Gasset, antes ainda de começar a fazer a barba.
Sou tentado a defender o direito que todos temos de ter alguns "preconceitos". Um sujeito cem por cento tolerante é desprovido de moral pessoal e imprestável para uma ética coletiva. É preciso dizer em certos casos: "Isso não!" Um homem sem preconceitos é um empirista empedernido, uma besta, um monstro amoral.
Há um quarto de século toleramos a ladainha petista sobre "um outro mundo possível". Até a pouco, os petistas nos vendiam um certo "socialismo democrático", binômio antitético que a senadora Heloísa Helena (PSOL-AL) ressuscitou em entrevista ao programa Roda Viva. A propósito: ela afirmou lá que apenas 17% das terras agriculturáveis do país são cultivadas. Seria mentira ainda que Marina Silva derrubasse a floresta amazônica e secasse o Pantanal para plantar soja. Não foi contestada em sua logorréia narcotizante. Uma bobagem choca; uma penca delas paralisa os sentidos, especialmente se vêm embaladas naquela cascata de disparates reiterados por sinonímias vertiginosas.
Nunca houve socialismo democrático ou marxismo cristão. Quem acata essas bobagens ou está comprometido com a causa ou procura ser simpático com os "progressistas". Não ambiciono a ração de boa vontade de adversários. O socialismo matou quase 200 milhões para criar o "novo homem", e sua primeira vítima foi a liberdade. Tentam pôr no meu colo os mortos das ditaduras de direita. Dispenso-os. Façam como eu: joguem todas elas no lixo. Esquerdistas, no entanto, não reconhecem em Fidel Castro um facínora e têm num homicida compulsivo como Che Guevara um herói, ainda a render filmes e rococós sentimentais. Entronizam um bufão como Hugo Chávez no posto de futuro mártir das causas populares. "Mártir"? Eu e minhas esperanças...
Que bom se a esquerda light e a socialdemocracia estivessem certas, e tudo isso cheirasse à naftalina da guerra fria, sepultada sob os escombros do Muro. Mas estão erradas, e a metáfora é óbvia demais. No Brasil, as seduções do demônio totalitário estão ativas e plasmadas no PT, que segue o figurino do Moderno Príncipe gramsciano. É confortável para os covardes a suposição de que a lenda lulo-petista se esgota no clepto-stalinismo dos quarenta quadrilheiros. É uma forma de colaboracionismo.
Essa lenda contamina as instituições e busca mudar a natureza da democracia. Leiam o texto a seguir:
O Moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, uma vez que seu desenvolvimento significa, de fato, que todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em que tem como ponto de referência o próprio Moderno Príncipe e serve ou para aumentar seu poder ou para opor-se a ele. O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costume.
É como Gramsci queria o "partido" que faria a transição para o socialismo aproveitando-se das fragilidades da democracia. Leninismo e fascismo em pacote único. Ele já havia aposentado as ilusões armadas na Europa, mas não a tara totalitária. O PT também arquivou as ambições socialistas - embora financie tropas de assalto à democracia -, mas não a vocação para submeter a sociedade a um ente de razão partidário.
Os sem-preconceito e liberais de miolo mole vêem o partido de Lula seguindo a bula dos mercados e o supõem convertido. Será? O que antes era "criminoso" passou agora a ser "virtuoso" na medida em que "tem como ponto de referência o próprio Moderno Príncipe". Ele é capaz de "subverter todo o sistema de valores intelectuais e morais". E até os juros reais mais altos do mundo se tornam variantes de um "imperativo categórico".
A trama criminosa é só entrecho de narrativa mais ambiciosa. Nem a eventual derrota de Lula poria fim a essa história. Se vitorioso, o PT tentará perpetuar-se no poder mudando as regras do jogo: o caminho é tornar irrelevantes as eleições como meio de alternância de poder. E pode fazê-lo fingindo obediência ao rito democrático. É de sua natureza. Se derrotado, a "Al-Qaeda" - rede presente nos três Poderes, sindicatos, fundos de pensão, igrejas, estatais, imprensa, movimentos sociais e ONGs - tentará emparedar o próximo governo por meio do confronto e da chantagem. O que fazer? Dizer não ao demônio totalitário. Outras divergências são secundárias.
Tudo o que é ruim para o PT é bom para o Brasil.
Polêmico repórter
O jornalista americano Larry Rohter ficou conhecido entre os brasileiros por quase ter sido expulso do país ao relatar sobre o gosto do presidente Lula por bebidas alcoólicas. Em Deu no New York Times, o incômodo repórter traz detalhes sobre esse assunto, além de matérias feitas no Brasil sobre temáticas variadas.
Especial Deu no New York Times...A política, a sociedade e a cultura brasileiras na visão de Larry Rohter, o jornalista americano que quase foi expulso do Brasil por falar do gosto do presidente por bebidas alcoólicas
A certa altura, em uma comemoração entre amigos no Rio de Janeiro, em maio de 2004, pediram ao americano Larry Rohter que cantasse. O então correspondente do The New York Times no Brasil levantou-se e entoou – com voz desafinada, segundo o relato – Apesar de Você, célebre canção de protesto disfarçado contra a ditadura militar. "Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?", diz um dos versos. Um dos presentes observou que Chico Buarque, autor da música, era partidário de Luiz Inácio Lula da Silva. Rohter apreciou a ironia: na sua interpretação improvisada, a letra voltava-se exatamente contra o governo Lula, que tentara expulsá-lo do país. O motivo dessa tentativa de intimidação – talvez o episódio mais vergonhoso das complicadas relações da administração petista com a imprensa livre – chega a ser trivial: uma reportagem sobre o notório gosto de Lula pelas bebidas alcoólicas. O caso é narrado em detalhes por Rohter em Deu no New York Times (tradução de Otacílio Nunes, Daniel Estill, Saulo Adriano e Antonio Machado; Objetiva; 416 páginas; 39,90 reais), que chega nesta semana às livrarias brasileiras e do qual VEJA antecipa alguns trechos, com exclusividade, ao longo das próximas páginas.
A obra divide-se em cinco seções: Cultura, Sociedade, Política, Amazônia e Economia/Ciência. Cada uma delas traz as melhores reportagens do autor sobre o tema, introduzidas por um comentário geral, com uma visão mais pessoal e opinativa do que era permitido ao repórter em sua cobertura cotidiana. Aos 58 anos, casado com uma carioca que cursava como ele a Universidade Georgetown, em 1967, Rohter conhece o país como poucos brasileiros. Começou a trabalhar para o escritório da Rede Globo em Nova York no início da década de 70, produzindo segmentos para o Fantástico, e em 1972 veio ao país pela primeira vez, para trabalhar como uma espécie de cicerone de músicos estrangeiros que se apresentavam no Festival Internacional da Canção produzido pela emissora. Depois dessa experiência inicial, foram quatro anos no Brasil como repórter da revista Newsweek e, em seguida, oito anos e meio como correspondente do Times, função que ele deixou em março. De volta aos Estados Unidos, Rohter cobriu a campanha presidencial de McCain para o jornal. Seu livro traz a visão crítica que se espera de um bom observador estrangeiro – as ilusões ufanistas e os vícios nacionais (a corrupção em particular) estão rigorosamente documentados. Mas é também uma obra muito generosa com o Brasil. A própria interpretação de Rohter para a tentativa de expulsá-lo em 2004 é, afinal, positiva. "O Judiciário agiu de maneira louvável. O pleno funcionamento das instituições brasileiras foi o grande destaque do episódio", disse ele, por telefone, de sua casa em Nova York, a VEJA.
"De modo geral, suas matérias sobre o Brasil eram ricas e objetivas", diz o diplomata Roberto Abdenur, ex-embaixador em Washington – cuja única restrição ao trabalho de Rohter é exatamente aquele sobre o presidente e a bebida: "A reportagem era distorcida e exagerada. Lula gosta de beber seu uísque, mas jamais ouvi que isso era problema". De fato, os hábitos etílicos do presidente já tinham ampla divulgação em notas e artigos na imprensa nacional, sem que ninguém levasse isso tão a sério. O relato de Rohter só criou tanta celeuma porque saiu no Times, um dos maiores jornais americanos e, a despeito de algumas crises de credibilidade recentes (como a causada em 2003 pelo repórter Jayson Blair, que publicou matérias inventadas), ainda o mais influente deles. Junte-se a isso o pensamento provinciano brasileiro de que, se "deu no New York Times", pouca coisa não é, e eis que o governo armou um circo desproporcional ao assunto.
Na interpretação apresentada em Deu no New York Times, o incidente da tentativa de expulsão vai mais fundo do que apenas ao copo de uísque presidencial. O governo já estaria irritado com Rohter por causa de reportagens anteriores – republicadas, com comentários do autor, no livro recém-lançado. Uma delas, de março de 2004, dizia respeito ao esforço de um governo de esquerda para manter ocultos os fatos sobre a guerrilha do Araguaia, na qual membros do PC do B e o Exército se enfrentaram entre 1970 e 1974. Rohter lembrou uma dolorosa dívida moral do estado brasileiro para com os camponeses locais, que, pegos no fogo cruzado entre guerrilha e repressão, foram desalojados, torturados ou mortos pelas Forças Armadas. "Eles eram as principais vítimas do episódio, mas pareciam ter sido esquecidos por todos os outros protagonistas: Forças Armadas, governo e até os próprios guerrilheiros", escreve o jornalista. Outra reportagem, ainda mais incômoda para o governo, saíra um mês antes, em fevereiro de 2004. Falava do assassinato do prefeito petista Celso Daniel, de Santo André, e lembrava as possíveis relações entre o crime e o esquema de corrupção que unia várias cidades administradas pelo PT, com a finalidade de arrecadar dinheiro para a campanha presidencial de Lula naquele ano de 2002. A rigor, como o próprio Rohter observa no livro, a reportagem não trazia novidades sobre o caso (que, passados quase sete anos, ainda está para ser esclarecido). Mas o governo brasileiro considerou constrangedor que esses fatos fossem publicados no Times em um momento em que Lula buscava credibilidade internacional.
Já tendo acumulado esse histórico de reportagens indigestas para o petismo, Rohter resolveu xeretar a decantada intimidade de Lula com o copo – algo que, como se sabe, nunca foi visto como uma qualidade negativa e, para muitos eleitores, era francamente simpática. Rohter seguia a tradição do jornalismo americano segundo a qual homens públicos não têm vida privada. Políticos da situação e da oposição confirmaram que Lula gostava de beber, mas, à exceção de Leonel Brizola, nenhum quis ser identificado. O jornal publicou a reportagem em 9 de maio de 2004, um domingo. As reações iniciais caíram dentro do previsível: afetações de orgulho nacional ferido. Na terça-feira à noite, porém, o governo extrapolou: com base em uma lei do tempo da ditadura, resolveu cancelar o visto de Rohter e expulsá-lo do país.
De suas fontes no Planalto, o correspondente soube detalhes do que teria ocorrido na reunião ministerial que conduziu à malfadada decisão. O então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que poderia ser uma voz legalmente sensata no encontro, estava ausente, em compromisso na Suíça. Prevaleceram as opiniões alopradas de Luiz Gushiken e José Dirceu, que mais tarde tombariam nos escândalos do mensalão. A julgar pelo relato de Deu no New York Times, o próprio Lula aloprou: "De acordo com a mesma fonte, quando alguém objetou que me expulsar era inconstitucional porque minha mulher é brasileira, Lula replicou batendo na mesa e berrando, exaltado, ‘Que se f*** a Constituição! Quero que ele vá embora!’". Rohter permaneceu no país, graças a um pedido de habeas corpus impetrado pelo então senador Sérgio Cabral e aceito pelo juiz Francisco Peçanha Martins, do Superior Tribunal de Justiça. O governo recuou, buscando um acordo com o New York Times – que Márcio Thomaz Bastos tentou vender como um pedido de desculpas do jornal. "Foi pouco comum termos um incidente dessa ordem em um país democrático", diz Susan Chira, editora da seção Internacional do Times.
Os ataques contra o correspondente não se restringiram aos esforços oficiais para mandá-lo de volta a Nova York. Uma campanha insidiosa passou a ser fomentada na internet, talvez a primeira ação concertada de uma prática que se tornaria corrente no PT dali em diante sempre que se quisesse destruir a reputação de um "inimigo" da causa. Os agentes petistas fizeram circular um texto em que Rohter era acusado de ser agente da CIA, de abusar sexualmente de indiazinhas na Amazônia e de conspirar para derrubar o venezuelano Hugo Chávez. Ele era acusado também de beber "possivelmente bem mais que Lula". Até aqui nada de muito novo para quem já sofreu esse tipo de ataque. A novidade é quanto Rohter avançou na identificação dos autores da campanha caluniosa. O texto contra ele vinha assinado por uma professora da Universidade de Brasília. Procurada por Rohter, ela negou a autoria. O colunista Ricardo Noblat buscou a fonte de uma cópia recebida desse e-mail e chegou até um endereço... no Palácio do Planalto. A fantasia paranóica de que a reportagem atendia aos interesses conservadores do governo Bush esbarra na orientação política do New York Times, conhecido por sua oposição desinibida aos republicanos e a Bush. O livro do correspondente americano aponta algumas afinidades entre Bush e seu colega brasileiro. Diz ele: "Ideologia não é o único fator a determinar a relação entre presidentes e países. A personalidade também é importante. No caso de Bush e Lula, ajuda a explicar por que os dois se dão bem".
Há bem mais em Deu no New York Times do que o incidente da quase-expulsão. Nos textos reunidos no livro, Rohter fala da música de Gilberto Gil e Caetano Veloso e da tecnologia agrícola da Embrapa, de jegues e de Paulo Coelho. O livro contém outra peça que criou polêmica, mas por razões mais, digamos, cosméticas do que políticas: uma reportagem sobre a obesidade entre os brasileiros. Rohter teve azar com o fotógrafo. Para ilustrar a matéria, baseada em estatísticas do IBGE, o retratista buscou gordinhas em uma praia do Rio – e fotografou turistas checas fofinhas como se fossem brasileiras. Os cariocas, é claro, pegaram no pé do então correspondente. Ossos – e gorduras – do ofício. "Larry é um profissional consumado e versátil, que escreve tanto artigos de análise política quanto de crítica cultural. Sua visão nuançada e profunda do Brasil assegurou que o New York Times publicasse um grande número de reportagens sobre o país", diz Susan Chira, que foi editora de Rohter.
De certo modo, Deu no New York Times pode ser lido como uma versão contemporânea dos relatos de viajantes sobre a vida brasileira. Essa tradição começou na colônia, com Jean de Léry e Hans Staden, e incluiu figuras de proa da ciência mundial, como os naturalistas Darwin e Humboldt, que mandavam ao então centro do mundo notícias e impressões das terras remotas que visitavam. O Brasil não é mais o país exótico e selvagem que esses aventureiros e cientistas buscavam – mas o olhar do estrangeiro ainda pode desvendar aspectos inusitados para os nativos. O estrangeiro é mais desassombrado para afrontar unanimidades nacionais – como a arquitetura de Brasília, já desmontada por críticos como Robert Hughes e Marshall Berman e mais uma vez criticada por Rohter. Para quem tem o ex-correspondente americano na conta de uma besta-fera imperialista, a leitura de seu livro pode ser iluminadora: será surpreendente ver que ele apóia algumas bandeiras caras ao atual governo. É a favor das cotas raciais nas universidades e se mostra complacente com a ex-ministra da Igualdade Racial Matilde Ribeiro, que caiu quando se soube de sua farra com os cartões corporativos. Concorde-se ou discorde-se dele, Larry Rohter é um repórter inquieto, um representante da melhor tradição americana da liberdade de imprensa. É bom que o galo cante sem precisar da autorização do mandante da ocasião.
Lula e a bebida
"O meu relacionamento com Lula, embora esporádico, data dos anos 70, quando ele estava surgindo como líder sindical e eu, um correspondente recém-chegado ao Brasil, o acompanhei e o observei. Já conversei bastante com ele, ouvindo declarações astutas e também bobagens, todas devidamente anotadas no meu bloquinho. Já tomei água, refrigerante e até uma cachacinha com ele. Então, fico perplexo quando ouço o presidente alegar que nunca teve nenhum contato comigo. A verdade é comprovadamente outra"
"Também fiquei impressionado na época com as generosas quantidades de álcool que ele consumia. Como tenho por hábito quando estou trabalhando, eu me limitava a tomar Fanta Laranja, e me lembro de Lula me provocar com bom humor por causa disso. ‘Que que é isso, meu caro? Um jornalista que não gosta de beber?’. Enquanto ia de uma reunião a outra, ele bebia o que lhe oferecessem: cachaça, uísque, conhaque para se aquecer em manhãs frias, e mesmo a cerveja da qual ele afirma não gostar. Às vezes seus olhos ficavam injetados e sua fala, enrolada. Era difícil dizer se isso se devia ao álcool, porque ele estava visivelmente fatigado de tensão e falta de sono, e tendia, mesmo quando não tinha bebido, a falar alto e divagar em público, pulando de um tópico a outro"
A tentativa de expulsão
"A resposta inicial foi bem o que eu esperava: uma explosão de nacionalismo, parte dela bastante hipócrita. Em certo momento, houve um desfile de mais de doze políticos de Brasília me denunciando em um canal de televisão a cabo. Eu tive de rir, porque dois dos que me atacavam – um de um partido aliado ao PT, o outro uma importante figura da oposição – tinham sido informantes para minha reportagem e expressado suas preocupações com a recente passividade de Lula e suas suspeitas de que ele andava bebendo em excesso"
"Contudo, devo confessar que nunca pensei que Lula e seus assessores seriam tolos ao ponto de ordenar minha expulsão do país. Fiquei tão chocado quanto qualquer outra pessoa quando a medida foi anunciada na noite de terça-feira, e soube, assim que ouvi o noticiário, que eles tinham superestimado sua força e iam sofrer uma derrota. Uma coisa era eles invectivarem contra um gringo metido e narigudo que estava ‘manchando’ a ‘honra’ do Brasil. Mas ao tentarem me expulsar, empregando uma lei que datava dos piores dias da ditadura militar, eles tinham ido longe demais e agora estavam também pisando nos calos dos brasileiros"
Márcio Thomaz Bastos
"Depois, muitos de meus colegas na imprensa brasileira retrataram Bastos como o líder sensato e cheio de princípios que havia habilmente costurado uma resolução para uma crise desnecessária. Não partilho essa opinião. A meu ver, o comportamento de Bastos quando retornou da Suíça foi tortuoso e ficou aquém dos padrões éticos exigidos dele como o principal representante legal do país. Ele tinha sido advogado pessoal de Lula antes de ingressar no ministério, e, como ocorreu depois, durante a crise do mensalão de 2005 e 2006, agiu não para defender os interesses mais amplos da nação brasileira, mas para favorecer os interesses partidários mais estreitos de seu antigo cliente e do Partido dos Trabalhadores. Para mim, o verdadeiro herói não louvado do episódio, se é que houve um, foi Sérgio Cabral, que na época era senador pelo estado do Rio de Janeiro, e hoje é governador desse estado e um aliado de Lula. Sem me conhecer pessoalmente, mas reconhecendo que estava em jogo um princípio importante, ele entrou com um pedido de habeas corpus para evitar minha expulsão"
Marco Aurélio Garcia
"Em sua função como conselheiro de Lula em assuntos de segurança nacional e política externa, Garcia, ex-professor universitário, parecia se ver como uma espécie de Henry Kissinger tupiniquim, um mestre da realpolitik. A realidade, contudo, é que ele parece mais um Renato Aragão da diplomacia, um trapalhão cujo principal talento é bagunçar as coisas"
Lula e Bush
"As semelhanças de Lula com George W. Bush tem mais a ver com caráter e personalidade. Como Bush, Lula não parece ter muita curiosidade intelectual. Ele não gosta de ler relatórios, muito menos livros, tem uma ideologia estreita que impede que novas experiências mudem sua perspectiva, tinha muito pouca experiência do mundo fora das fronteiras de seu próprio país antes de assumir o governo, e disse algumas coisas notavelmente ingênuas e desinformadas enquanto viajava pelo exterior. Ambos maltratam sua língua nativa, mas ambos são tidos como calorosos e cativantes em situações de contato pessoal. Talvez isso explique a afinidade que eles parecem ter desenvolvido um pelo outro: apesar de suas diferenças ideológicas, parecem reconhecer um no outro espíritos aparentados. De nenhum dos dois, contudo, pode-se dizer que tenha crescido em estatura ou credibilidade enquanto ocupava o cargo"
Oscar Niemeyer
"Outro exemplo de um aspecto da cultura brasileira elogiado muito mais do que ele provavelmente merece é a obra do arquiteto Oscar Niemeyer. Sei que isso pode soar chocante, porque há um consenso quase universal aqui no Brasil de que Niemeyer é um gênio. (...) Deixando de lado a política stalinista de Niemeyer, que é execrável, há uma contradição fundamental e irreconciliável entre o que ele professa e a obra que ele produziu. Ele afirma querer uma sociedade baseada em princípios igualitários, mas sua arquitetura, para usar a linguagem do mundo da computação, não é user-friendly. Ao contrário: ela é profundamente elitista e mesmo egoísta, concentrada principalmente em fazer declarações grandiosas e eloqüentes por si mesmas, para satisfação de Niemeyer e seus admiradores, mesmo que cause desconforto ou inconveniência ao usuário"
O esquema nas prefeituras petistas
"A atividade ilegal de levantamento de dinheiro em Santo André não era um caso isolado, como afirmavam os líderes do partido, mas era antes parte de um esquema generalizado para acumular uma grande soma em caixa 2 para a campanha, para contrabalançar o apoio da comunidade empresarial aos tucanos. Tinham sido dadas ordens a todos os prefeitos do PT, minha fonte me relatou, para levantar dinheiro por todos os meios possíveis, e cada município havia recorrido a um mecanismo um pouco diferente para cumprir sua cota. Em Santo André eram as empresas de ônibus, como havia ficado claro na investigação do assassinato de Celso Daniel. (...) Em Campinas, onde o prefeito, Antonio da Costa Santos, o ‘Toninho do PT’, tinha sido assassinado quatro meses antes de Celso Daniel, era o superfaturamento de obras públicas e de contratos de estacionamento. E em Ribeirão Preto eram os contratos de coleta de lixo. ‘Ribeirão Preto também?’, perguntei, um pouco chocado, mas no mesmo instante percebendo a importância do que ouvia. Estávamos falando obviamente da época em que Antonio Palocci era prefeito lá, e agora, como ministro da Fazenda, ele se tornara o símbolo da adoção por Lula da responsabilidade fiscal"
O caso Celso Daniel
“Enquanto fazia reportagens em São Paulo no começo de 2004, eu tinha entrevistado dois dos irmãos de Celso Daniel, um dos quais tinha se escondido depois de receber ameaças de morte. Bruno e João Francisco Daniel disseram com toda a clareza que, de acordo com o que seu irmão havia contado a eles, os membros mais importantes do PT não apenas sabiam do esquema de corrupção que provocou sua morte, como haviam desempenhado um papel ativo em sua operação. Além disso, eles me disseram, esses membros do PT tinham confirmado para Bruno esse papel. Em resultado disso e de outras entrevistas, minha reportagem incluía um parágrafo, mais ou menos na metade do texto, que imediatamente disparou o alarme no governo e no partido governante”.
‘Pouco tempo depois do enterro de Celso, Gilberto Carvalho me contou que tinha feito várias entregas em dinheiro vivo ao partido e que, em uma ocasião, ele ficou apavorado porque estava transportando mais de 600.000 dólares em uma maleta’, disse Bruno Daniel na entrevista. ‘“Ele me contou que entregava o dinheiro diretamente a José Dirceu, e foi isso que eu disse aos promotores’.”
Genoíno e a guerrilha do Araguaia
"As entrevistas com Genoíno, que parecia sempre achar a imprensa estrangeira insuficientemente respeitosa, eram sempre delicadas, e nenhuma delas foi mais delicada que esta. Eu entrevistara Genoíno várias vezes no passado, e ele sempre mostrara impaciência comigo e com minhas perguntas, que ele obviamente julgava serem especialmente impertinentes. Mas esta estava fadada a ser uma situação especialmente sensível, dada a história pessoal dele. Ele era tão suscetível a fofocas de que se tornara um dedo-duro sob tortura e revelara informações que comprometiam seus companheiros militantes que tinha até escrito um artigo de jornal negando os boatos"

Trechos de Deu no New York Times, de Larry Rohter
Lula e eu
"Fiquei puto porque, como pode um cidadão que nunca conversou comigo, que nunca tomou um copo de cerveja comigo, que nunca tomou um copo d'água comigo, fazer uma matéria de que eu bebia? Isso me deixou muito puto." Assim falou Luiz Inácio Lula da Silva numa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo em 2007, referindo-se à reportagem mais polêmica que eu escrevi em todos os meus anos como correspondente no Brasil.
O desabafo do presidente parece ser sincero, e contém várias frases de efeito. Só que, como muito do que Lula disse sobre tantas coisas ao longo dos anos, ele simplesmente não é correto.
O meu relacionamento com Lula, embora esporádico, data dos anos 70, quando ele estava surgindo como líder sindical e eu, um correspondente recém-chegado ao Brasil, o acompanhei e o observei. Já conversei bastante com ele, ouvindo declarações astutas e também bobagens, todas devidamente anotadas no meu bloquinho. Já tomei água, refrigerante e até uma cachacinha com ele. Então, fico perplexo quando ouço o presidente alegar que nunca teve nenhum contato comigo. A verdade é comprovadamente outra, como as matérias neste capítulo vão mostrar.
A primeira vez que encontrei Lula foi em maio de 1978, durante a primeira greve no ABCD paulista, que fez dele um líder nacional. Na época, eu era correspondente do The Washington Post e da revista Newsweek, e minhas primeiras impressões, baseadas nas entrevistas que ele dava a nós da imprensa, foram positivas, e nosso relacionamento inicial foi cordial. Na época, como agora, Lula chamou minha atenção como um líder astuto e sagaz, com bons instintos políticos. Sim, a linguagem dele às vezes derivava para a fanfarronice e o exagero, e ele tinha um jeito meio rude. Mas isso parecia ser exatamente o que a situação exigia naquele momento: um líder trabalhador franco e duro que pudesse enfrentar o general Ernesto Geisel e o general Golbery do Couto e Silva, que governavam o país na época, e mobilizar suas tropas contra as deles.
Naquele momento, o Brasil estava começando sua transição de volta à democracia, e a classe trabalhadora precisava de um escoadouro tanto para suas demandas salariais como para as frustrações que haviam crescido durante anos de exploração. Lula logo passou a personificar essas aspirações. É claro que ninguém na época poderia tê-lo imaginado como presidente de uma nação de 180 milhões de pessoas, ou que algumas das mesmas qualidades que faziam dele um líder trabalhador tão eficaz pudessem acabar sendo não tão desejáveis em um chefe de Estado. Depois de anos de pelegos dominando o movimento dos trabalhadores no Brasil, parecia um milagre que estivesse surgindo um autêntico "herói da classe operária", para tomar emprestada uma frase de John Lennon que foi usada como título de minha primeira reportagem sobre Lula.
Eu era pessoalmente simpático a muitas das aspirações que Lula expressava em nome da classe trabalhadora industrial. Tendo sido criado em Chicago, fui trabalhar em fábricas assim que fiz 16 anos, a idade mínima com que as pessoas são autorizadas a trabalhar nos Estados Unidos. Trabalhei primeiro na linha de produção de uma fábrica de lâmpadas, ganhando o salário mínimo, e depois, como estudante universitário, consegui emprego em uma fábrica de espelhos, fazendo um trabalho que envolvia o manuseio de produtos químicos perigosos. Também trabalhei como carteiro, carregador e músico, e pertenci a dois sindicatos. Então, já conhecia algo do mundo do trabalho braçal, e das frustrações e do desejo de dignidade associados a ele. Depois que cheguei ao Brasil, também fui colher café e cortar cana-de-açúcar, apenas para ser capaz de entender melhor a natureza desses trabalhos - o que me levou a concluir que cortar cana deve ser o pior trabalho do mundo.
Quando uma greve geral foi convocada em abril de 1979, fui para o ABC pela revista Newsweek para escrever o que acabou sendo o primeiro perfil de Lula a ser publicado por um dos órgãos importantes da imprensa americana. Durante quase uma semana, acompanhei Lula em discursos, reuniões e discussões estratégicas; também fiz um par de entrevistas pessoalmente com ele, que se refletiram na reportagem da Newsweek reproduzida neste livro. Fiquei sabendo depois que Lula ficou contente com o resultado, e era mesmo para ficar. A exemplo de Lech Walesa, com quem era às vezes comparado naquela época, se quisesse fazer seu trabalho com eficácia, Lula precisava de proteção contra uma prisão arbitrária. Ter seu nome mais conhecido no exterior era uma forma importante de ele obter essa blindagem.
De perto, Lula parecia então ser uma mistura interessante de personalidade ainda em formação com uma capacidade tirada das ruas de sobreviver em ambientes hostis, uma pedra ainda por lapidar, cercado por bandos concorrentes de ideólogos e pragmáticos que manobravam para obter o apoio dele para suas metas conflitantes. Às vezes, a facção marxista-leninista parecia ter enchido a cabeça dele com noções simplistas antiquadas de luta de classes e política mundial. Eu atribuía sua disposição para repetir esses clichês, e sua imagem caricatural da vida nos Estados Unidos, à falta de conhecimento que ele tinha do mundo fora do Brasil, mas presumia que Lula superaria isso à medida que sua experiência e suas viagens se ampliassem.
Na maior parte do tempo, no entanto, Lula era um pragmático consumado, centrado principalmente nas questões básicas mais importantes e disposto a usar (e também descartar) o apoio de qualquer parte se ela servisse a seus propósitos. Na época, como agora, ele também tinha um inegável calor pessoal, que o tornava uma personalidade atraente, em especial para os trabalhadores que se esforçava em organizar e representar. Era um deles e falava sua linguagem, o que era algo novo e saudável para o Brasil.
Também fiquei impressionado na época com as generosas quantidades de álcool que ele consumia. Como tenho por hábito quando estou trabalhando, eu me limitava a tomar Fanta Laranja, e me lembro de Lula me provocar com bom humor por causa disso. "Que que é isso, meu caro? Um jornalista que não gosta de beber?" Enquanto ia de uma reunião a outra, ele bebia o que lhe oferecessem: cachaça, uísque, conhaque para se aquecer em manhãs frias, e mesmo a cerveja da qual ele afirma não gostar. Às vezes seus olhos ficavam injetados e sua fala, enrolada. Era difícil dizer se isso se devia ao álcool, porque ele estava visivelmente fatigado de tensão e falta de sono, e tendia, mesmo quando não tinha bebido, a falar alto e a divagar em público, pulando de um tópico a outro. Mas um líder sindical que bebia muito não me parecia nada estranho: em Chicago, a maioria dos chefes de sindicato em torno dos quais cresci eram irlandeses, e famosos por sua afinidade com bebidas alcoólicas, de qualquer tipo e em qualquer quantidade. Lula parecia pertencer à mesma linhagem.
Embora eu pensasse que Lula era muito capaz como sindicalista, as coisas ficaram mais complicadas quando o PT foi fundado, no começo de 1980. Como político, Lula era solicitado a manifestar posições políticas sobre muitos assuntos dos quais não sabia absolutamente nada, e muitas declarações questionáveis - que, suspeito, ele depois lamentou - terminaram saindo de sua boca, especialmente sobre questões de política internacional.
Deixei o Brasil em 1982, mas durante os anos que passei na China, na América Central, no México e no Caribe continuei a observar Lula a distância, mais por curiosidade pessoal do que por necessidade profissional. Eu estava no Brasil em férias durante a campanha de 1989, e prestei especial atenção a ele na época. A última vez que me lembro de ter falado com ele antes de voltar ao Brasil, em novembro de 1998, foi em El Salvador, em 1996, em uma reunião do Foro de São Paulo, que cobri. Ele e eu estávamos hospedados no mesmo hotel, então eu me reapresentei, ganhando um abraço caloroso e um cumprimento, "Como vai, meu querido?". Em outras palavras, todos os meus contatos com Lula foram positivos e cordiais até o momento em que comecei a escrever sobre ele como chefe de sucursal do New York Times.
Quando voltei ao Brasil há uma década, inicialmente Lula não parecia ser uma figura central em minha tela de radar. Em 1999, ele já havia concorrido à Presidência três vezes e perdido, e quando eu refiz contato com alguns velhos amigos do PT, eles indicaram que Lula estava em dúvida sobre a sensatez de concorrer pela quarta vez em 2002. Além disso, FHC estava no poder, e o Brasil passava por uma crise financeira que deixou Wall Street e Washington em pânico, portanto, meu foco principal estava nessas histórias.
Quando olhamos para trás, Lula hoje parece quase predestinado a ter ganho a Presidência em 2002. Mas certamente não parecia assim naquela época, e a verdade é que ele se beneficiou de alguns lances de sorte. O primeiro foi a morte prematura, de câncer, de Mário Covas, do PSDB, que tinha uma poderosa base eleitoral como governador de São Paulo e teria sido um oponente formidável. Depois, bem no momento em que Roseana Sarney estava prestes a ultrapassar Lula nas pesquisas de opinião pública no começo de 2002, sua candidatura foi destruída por uma batida da Polícia Federal no escritório do marido dela em São Luís, que encontrou em um cofre pilhas de dinheiro inexplicado. As pesquisas indicavam que o país tinha fome de mudança, e até então Roseana Sarney, apesar de pertencer ao PFL e ser filha de um ex-presidente, parecia estar conseguindo se apresentar como uma "cara nova" e uma alternativa à velha briga de sempre entre tucanos e petistas.
O maior golpe de sorte de Lula, no entanto, foi que o PT conseguiu desviar a atenção do assassinato, em 20 de janeiro de 2002, de Celso Daniel, prefeito de Santo André, que era um dos principais assessores de campanha de Lula e que também se previa que fosse ministro, talvez da Fazenda, em qualquer governo do PT. Se aquela investigação tivesse sido levada a cabo com o mesmo vigor e energia que foram dirigidos contra Roseana Sarney, poderia facilmente ter torpedeado a candidatura do próprio Lula, pelas mesmas razões pelas quais a campanha de Roseana desmoronou. Mas terei muito mais a dizer sobre o caso Celso Daniel em breve.
Astrologia fascista
Um dos filósofos mais inteligentes (e rabugentos) do século XX, o alemão Theodor Adorno, defende a teoria de que a astrologia seria uma forma de dominação social, aparentada ao nazismo. No livro As Estrelas Descem à Terra, da década de 50, ele tenta comprovar a tese, a partir de análises do horóscopo do jornal Los Angeles Times combinadas à conceitos de Freud.
Sob o signo do mau humor...Em obra dos anos 50 só agora lançada no Brasil, o filósofo alemão Theodor Adorno traça paralelos entre astronomia e fascismo. É um exemplo típico de seu pensamento muitas vezes brilhante – mas propenso a uma enorme rabugice
Que a astrologia é uma rematada bobagem é fato bem estabelecido. Não há fundamento para a crença pseudocientífica de que a mecânica celeste influencia a vida amorosa ou profissional do leitor de horóscopos. Para o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), contudo, o problema é mais sério: a astrologia seria uma forma de dominação social, aparentada ao totalitarismo de Hitler e Stalin. Adorno descobre um chamado ao conformismo nas colunas astrológicas – e, com recurso à psicanálise, tenta demonstrar que a atribuição do destino às estrelas guarda "disposições paranóicas" similares àquelas mobilizadas pelo nazismo. Esse desconcertante paralelo está desenvolvido em As Estrelas Descem à Terra (tradução de Pedro Rocha de Oliveira; 196 páginas; 32 reais), livro dos anos 50, parte de uma coleção da editora da Unesp que vai lançar obras do filósofo ainda não conhecidas no Brasil (na mesma série, já saiu uma Introdução à Sociologia). Não é o título mais representativo de Adorno, mas, pelo texto um pouco mais pedestre (nem por isso é leitura leve), pode ser uma porta de entrada para quem queira ter uma idéia do que seja a obra de um dos mais influentes (e mais rabugentos) filósofos do século XX. Sua análise da coluna astrológica do jornal Los Angeles Times é muitas vezes brilhante – mas há algo de abusivo no modo como ele recorre aos conceitos de Freud para indicar similaridades entre o mapa astral e a suástica.
Adorno foi o expoente da chamada Escola de Frankfurt, que também congregou pensadores como Herbert Marcuse e Max Horkheimer. Foram os proponentes da chamada "teoria crítica", que tentou entender o capitalismo e os totalitarismos como manifestações da mesma lógica histórica. Nas mãos de Adorno, a teoria crítica voltava-se contra a "razão burguesa", que em sua origem, no iluminismo, teria o potencial de libertar o homem de seus medos primitivos, mas acabou degenerando em técnicas de dominação social, que vão desde a organização burocrática até o cinema, a televisão – e o horóscopo. Adorno também cultivava sua macumba profana: o marxismo. Mas não foi dos mais ortodoxos. Em sua obra – hoje ainda influente entre filósofos e críticos literários de esquerda –, são escassas as referências ao proletariado. Esteta que admirava o modernismo de Beckett, Kafka e Proust, ele dificilmente teria o que conversar com um operário.
Além de excelente crítico literário, Adorno entendia muito de música – foi aluno do compositor Alban Berg e serviu como consultor musical para Thomas Mann quando este escreveu Doutor Fausto. Em Marx (e Hegel), Adorno buscou, sobretudo um certo modo de argumentar – a famigerada dialética. Com um estilo tortuoso, mas elegante, os ensaios de Adorno não se importam de deixar contradições em aberto, para desespero do leitor cartesiano. Um bom exemplo é a afirmação pela qual ele é mais lembrado: a poesia não é possível depois de Auschwitz. A frase original, na verdade, é mais complicada: "Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas". Não se depreende daí que Adorno estivesse propondo que os poetas se calassem. Eis a tal contradição dialética: a impossibilidade da poesia é o que a tornaria cada vez mais necessária.
Auschwitz é o emblema perfeito para o pensamento de Adorno, que lidou com o trauma profundo da experiência totalitária. De ascendência judaica, ele passou os anos do nazismo no exílio, primeiro na Inglaterra e depois nos Estados Unidos. Catastrofista, identificava na democracia americana sintomas do totalitarismo que o expulsara da Europa. Nos Estados Unidos, escreveu, em parceria com Horkheimer, uma de suas obras mais influentes, Dialética do Esclarecimento – crítica de longo curso aos rumos da civilização capitalista. É nesse livro que aparece pela primeira vez o conceito de "indústria cultural", tão levianamente citado hoje. Adorno não gostava de cinema. E ficou conhecido por sua oposição ranzinza ao jazz. Por causa dela, foi acusado de racista – e respondeu com ironia típica: "Não tenho nenhum preconceito contra os negros, a não ser que nada, exceto a cor, os distingue dos brancos".
No fim da vida, Adorno viu-se sob o fogo pesado do movimento estudantil. Acossado por barulhentos protestos, teve de interromper um curso que dava em Frankfurt. Sempre reticente com os movimentos de massa, Adorno reclamava, em uma entrevista de 1969, do patrulhamento que sofrera então. "Jamais ofereci em meus escritos um modelo para quaisquer ações. Sou um homem teórico", disse. Uma lição que os acadêmicos de passeata do Brasil de hoje, prontos a largar os livros para invadir reitorias, poderiam aprender.
Trecho de As Estrelas Descem à Terra, de Theodor Adorno
A coluna de astrologia do Los Angeles Times
O presente estudo consiste em uma análise de conteúdo. Cerca de três meses da coluna diária "Previsões Astrológicas", escrita por Caroll Righter no Los Angeles Times, de novembro de 1952 até fevereiro de 1953, foram submetidos a interpretação. Como corolário, são feitas algumas observações a respeito de certas revistas astrológicas. A intenção é apresentar um quadro dos estímulos específicos que operam em seguidores da astrologia que hipoteticamente percebemos como representantes do grupo completo das pessoas envolvidas com o "ocultismo secundário", bem como dos efeitos supostos de tais estímulos. Assumimos que tais publicações, em alguma medida, modelam o pensamento de seus leitores; entretanto, elas também pretendem ajustar-se às suas necessidades, vontades, desejos e exigências de modo a "vender". Tomamos essa análise de conteúdo como um passo no sentido de estudar a mentalidade de grupos maiores de natureza semelhante.
Várias razões justificam a escolha desse material. Limitações no que diz respeito a instalações de pesquisa impediram um real trabalho de campo, e nos impeliram a uma concentração no material impresso, e não nas reações primárias. O material astrológico desse tipo mostrou-se muito abundante e de fácil acesso. Além disso, entre as várias escolas ocultistas, a astrologia provavelmente tem o maior número de seguidores na população. A astrologia por certo não é um dos ramos extremos do ocultismo, mas constrói fachadas de pseudo-racionalidade que a tornam mais fácil de aceitar do que, por exemplo, o espiritualismo. Não há aparição de fantasmas, e as previsões são pretensamente derivadas de fatos astronômicos. Assim, a astrologia pode não evidenciar mecanismos psicóticos tão claros quanto aquelas outras tendências mais obviamente lunáticas da superstição, o que pode dificultar nosso estudo no que diz respeito à compreensão das camadas inconscientes mais profundas do neo-ocultismo. Essa possível desvantagem, entretanto, é compensada pelo fato de que a astrologia se difundiu em amplos setores da população, de modo que as descobertas, à // medida que se mantiveram parcialmente confinadas ao nível do ego e a determinantes sociais, podem ser generalizadas com maior confiança. Além disso, do ponto de vista da psicologia social, estamos interessados justamente na pseudo-racionalidade, na zona de lusco-fusco entre a razão e os impulsos inconscientes.
Por ora, nosso estudo precisa limitar-se ao qualitativo. Ele representa uma tentativa de entender o que as publicações astrológicas significam em termos da reação dos leitores, tanto em um nível aparente e evidente como em um nível mais profundo. Embora essa análise seja guiada por conceitos psicanalíticos, deve-se apontar, desde o início, que nossa abordagem, ainda que envolva, sobretudo atitudes e ações sociais, precisa considerar fases conscientes ou semiconscientes. Não seria apropriado pensar exclusivamente em termos do inconsciente, dado que os próprios estímulos são calculados conscientemente e institucionalizados a tal ponto que seu poder de alcançar diretamente o inconsciente não pode ser visto como absoluto. Além disso, questões de interesse pessoal egoísta entram em jogo de modo contínuo e aberto. Com freqüência, objetivos superficiais estão mesclados a gratificações substitutivas do inconsciente.
De fato, o conceito de inconsciente não pode ser postulado dogmaticamente em qualquer estudo que diga respeito à área limítrofe dos determinantes psicológicos e das atitudes sociais. Em todo o campo das comunicação de massa, o "significado oculto" não é de modo algum inconsciente, mas representa uma camada que não é admitida nem é reprimida - a esfera da insinuação, da piscadela de olho, do "você sabe do que estou falando". Freqüentemente, deparamos com um tipo de "imitação" do inconsciente na manutenção de certos tabus que, entretanto, não são inteiramente endossados. Até agora, nenhuma luz foi lançada sobre essa zona psicológica obscura, e nosso estudo deveria, entre outras coisas, contribuir para seu entendimento. É desnecessário dizer que a base última dessa zona precisa ser buscada no verdadeiramente inconsciente, mas seria uma falácia perigosa considerar o lusco-fusco psicológico de numerosas reações de massa como manifestações diretas dos instintos.
No que se refere à eficácia para a mentalidade do leitor real, // nossos resultados devem necessariamente ser vistos como provisórios. São apresentadas formulações cuja validade só pode ser estabelecida pesquisando-se os próprios leitores - o que deveria ser feito. Podemos esperar que os autores do nosso material saibam o que estão fazendo e com quem estão falando, embora possam se basear em uma imagem de seus leitores formada por palpites e suposições estereotipadas, que talvez não fosse passível de confirmação pelos fatos. Além do mais, não deve haver dúvida de que em qualquer meio de comunicação de massa moderno é alimentada a idéia artificial de que, para moldar o material de comunicação de uma forma adequada à mentalidade daqueles responsáveis pela produção, ou aos seus desígnios, é necessário atender aos gostos de algum grupo. Encontra-se muito difundido o padrão ideológico que consiste em transferir a responsabilidade dos manipuladores para os manipulados. Assim, precisamos agir com cautela de modo a não tratar nosso material de forma dogmática, como uma reflexão espelhada da mente do leitor.
Por outro lado, tampouco tentamos fazer inferências por meio de nossa análise da mentalidade das pessoas responsáveis pelas publicações a serem examinadas, particularmente dos autores. Não nos parece que um estudo desse tipo nos levaria muito longe. Mesmo na esfera da arte, a idéia da projeção tem sido bastante supervalorizada. Embora as motivações do autor certamente estejam presentes no produto final, de forma alguma são tão determinantes como se costuma imaginar. Quando um artista se propõe um problema, este mobiliza uma força específica, mas, na maioria dos casos, ao traduzir sua concepção primária em realidade artística, o artista tem que seguir muito mais as exigências objetivas do produto do que sua própria ânsia de expressão. Certamente, tais exigências objetivas desempenham um papel decisivo nos meios de comunicação de massa, que dão mais ênfase ao efeito sobre o consumidor do que a qualquer problema artístico ou intelectual. Entretanto, a situação total aqui tende a limitar enormemente as chances de projeção. Aqueles que produzem o material seguem inumeráveis procedimentos, regras, padrões de comportamento e mecanismos de controle que necessariamente reduzem a um mínimo a possibilidade de qualquer tipo de expressão pessoal.
Certamente, as motivações do autor são apenas uma das fontes. Os padrões de comportamento a serem seguidos parecem ser muito mais // importantes. Ainda que seja difícil determinar a fonte particular de um produto como a coluna do Los Angeles Times, o material, devido ao seu caráter altamente integrado, fala uma linguagem própria que pode ser lida e entendida mesmo que não saibamos muito a respeito dos processos que levaram à sua formulação e a imbuíram de significado. Deve-se frisar que o entendimento de tal linguagem não pode ficar confinado aos seus morfemas individuais, mas deve permanecer sempre consciente do padrão total que esses morfemas vão formando ao se combinarem de forma mais ou menos mecânica. Alguns artifícios particulares que vez por outra se fazem presentes em nosso material, tais como, por exemplo, referências freqüentes ao contexto familiar de uma pessoa nascida em um determinado dia, podem parecer completamente triviais e inofensivos se vistos isoladamente, mas, na unidade funcional do todo, podem obter um significado que vai muito além da idéia inofensiva e reconfortante que se oferece à primeira vista.
Retratos do diabo
Duas obras de professores de literatura americanos tentam limpar a reputação do demônio. Satã — Uma Biografia, de Henry Ansgar Kelly, tenta demonstrar que a Bíblia não dá apoio à imagem tradicional que se faz do Diabo. E Anjos Caídos, de Harold Bloom, chama a humanidade a se solidarizar com o velho Satã: criaturas mortais e imperfeitas, seríamos todos.
Quem diabos é o diabo?...Satanás já fez a figura de um promotor público celeste e de um orgulhoso Anjo Caído. Mas ele também tem seu lado ridículo
Satanás pelo jeito faz o maior sucesso nos cursos de letras. Acabam de chegar às livrarias brasileiras duas obras de professores de literatura americanos que tentam, cada um a seu modo, limpar a péssima reputação do demônio. Satã – Uma Biografia (tradução de Renato Rezende; Globo; 388 páginas; 40 reais), de Henry Ansgar Kelly, da Universidade da Califórnia, procede a um exame minucioso da Bíblia para demonstrar que o livro sagrado não dá apoio à imagem tradicional que se faz do Diabo. Em Anjos Caídos (tradução de Antonio Nogueira Machado; Objetiva; 88 páginas; 29,90 reais), Harold Bloom, famoso crítico de Yale, chama a humanidade a se solidarizar com o velho Satã: criaturas mortais e imperfeitas, seríamos todos – inclusive você, leitor – Anjos Caídos. Satã, no entanto, sai um tanto diminuído da leitura dessas obras. O fascínio e o pavor que ele inspira resistem mal a tentativas de humanização.
A análise do texto bíblico realizada por Kelly às vezes se perde em filigranas gramaticais, o que torna a leitura um tanto árdua (a tradução inepta também atrapalha: chega ao ponto de confundir o Eclesiástico com o Eclesiastes, dois livros diferentes do Antigo Testamento). No cômputo final, Satanás é quase como um figurante na Bíblia. Sua aparição mais marcante no Antigo Testamento se dá no Livro de Jó, quando ele instiga Deus a testar a devoção de Jó infligindo toda sorte de castigo ao pobre. No Novo Testamento, mais vitaminado do que o barnabé jurídico que aparece em Jó, Satanás parece ter o mundo terrestre sob seu comando – mas tal poder, Kelly argumenta, é em última instância delegado por Deus.
A narrativa cristã da perdição e da redenção do homem quase poderia prescindir do Coisa-Ruim. A Igreja, porém, logo sentiria necessidade de um opositor supremo, uma figura na qual concentrar todo o terror do pecado. Aos poucos, foram atribuídas a Satã qualidades que não lhe pertenciam (seus chifres de bode, por exemplo, não aparecem na Bíblia e são uma provável herança pagã dos faunos, criaturas luxuriosas). Kelly atribui a Orígenes de Alexandria, teólogo do século III, o lance criativo de transformar Satanás em um anjo das hostes divinas que, por orgulho, tenta sobrepujar Deus – e acaba caindo do céu. O Anjo Caído, que prefere sofrer no inferno a servir no céu, ganhará uma dignidade diabólica no Paraíso Perdido, poema do inglês John Milton, do século XVII. É nessa figura que se centra Anjos Caídos, ensaio ligeiro de Bloom, admirador ardoroso de Milton. Derivação menor de Presságios do Milênio, a mais complexa (e esquisita) digressão teológica de Bloom, Anjos Caídos repisa os temas tradicionais do autor: Bloom reclama da decadência da leitura na cultura audiovisual contemporânea e reitera que Shakespeare (que não falava muito de anjos, caídos ou não) é muito, muito importante.
A dignidade do Anjo Caído de Milton é uma exceção. Ao caracterizar o Satã de Jó, Bloom diz que ele age como "o diretor da CIA de Deus". No mesmo tom, Kelly diz que o Satã do Novo Testamento não é mais diabólico do que um diretor do FBI. Na Legenda Áurea, coleção de histórias de santos do século XIII, um demônio faz um papelão ao tentar (sem sucesso) fazer com que Santa Justina ceda às investidas sexuais de um sedutor atrapalhado. No Fausto de Goethe, o demônio Mefistófeles se distrai espiando as nádegas dos anjos – e perde a alma de Fausto, carregada para os céus. O poeta francês Charles Baudelaire observou que o maior truque do diabo é nos convencer de que ele não existe. Faz sentido: é só dar-lhe um pouco de atenção, para o diabo se tornar uma figurinha ridícula.
Trecho de Satã, Uma Biografia, de Henry Ansgar Kelly
1. O Antigo Testamento
i.i O primeiro satã sobrenatural na Bíblia Hebraica: O Anjo de Javé e um Asno Falante
Para alguns leitores deste livro poderá ser uma surpresa a inexistência do mal, do Diabo ou de Diabo no Livro do Gênesis. A interpretação da Serpente no Jardim do Éden como sendo o Diabo é uma dessas adaptações a posteriori de informações antigas com idéias recentes que mencionei na Introdução. Mais adiante, veremos algumas das maneiras pelas quais essas transformações aconteceram. Quando examinamos o início do Gênesis com olhar atento, percebemos que não há criação ou queda de Anjos, mas apenas uma Serpente falante muito esperta (vamos, no entanto, tratá-la com maiúscula, pois é claramente única).
Ao final do relato de Adão e Eva, contudo, tomamos conhecimento de que os "Querubins" estão localizados ao leste do Éden, com uma espada flamejante entre eles, para impedir o acesso à Árvore da Vida. Porém estes Querubins parecem bastante inanimados, e talvez significassem estátuas tipo esfinges. Quando os Querubins estão vivos, como no Livro de Ezequiel, não são Anjos e sim animais trabalhadores do mundo dos Céus, como os cavalos que puxam as carruagens celestiais e servem de montaria para os Anjos.
Mais adiante no Gênesis, antes da história de Noé, há o relato sobre os Filhos de Deus que acasalaram com mulheres humanas concebendo os heróis da Antiguidade (Gn 6,1-4). Na literatura recente, como veremos, esses Filhos de Deus serão identificados como Anjos, chamados Guardiões, que violaram sua função de guardião, pecaram e foram punidos. Isso é apenas uma queda histórica dos Anjos mencionada na Bíblia. Ela é relembrada novamente no Novo Testamento, na Epístola de Judas e na Segunda Epístola de Pedro. Os primeiros onze capítulos do Gênesis, que contam a Criação e o Dilúvio, não são referidos no restante do Antigo Testamento, e parecem uma "prequela", ou seja, uma introdução escrita mais tarde. Em outras palavras, outra adaptação a posteriori, uma adaptação feita dentro da própria Bíblia.
O restante do Gênesis, começando com a história de Abraão, é, ao contrário, constantemente citado nos livros seguintes. É aqui que o termo "Anjo" é usado pela primeira vez. É um termo funcional, malak em hebreu original, que significa "mensageiro" ou "emissário". Aparece na Septuaginta grega como angelos (de fato, aggelos), mas na Vulgata Latina, angelus ou nuntius, dependendo se os tradutores interpretam o texto original como se referindo a um emissário sobrenatural ou humano.
Os Anjos não transmitem uma mensagem em si no Livro do Gênesis, mas podemos dizer com segurança que sempre "fazem uma declaração". Isto é verdade mesmo para os Anjos que subiam e desciam uma escada na visão de Jacó. Aqui a declaração angelical serve apenas como pano de fundo para o próprio Javé, que fala diretamente a Jacó (Gn 28,12-16). Diversos mensageiros apareceram antes no Gênesis, quando três homens visitaram Abraão para anunciar que sua mulher iria conceber um filho. No início, a impressão é de que os três homens são Javé, ou representam Javé (Gn 18,1-21), mas logo parece que um é Javé e os outros dois são identificados como "Anjos" (Gn 18,22; 19,1).
Algo similar parece acontecer como o misterioso "Mensageiro de Javé" (Malak yhwh), que ora é um porta-voz de Javé ora é o próprio Javé. Uma de suas aparições mais interessantes é relatada no Livro dos Números, o quarto livro da Torá, ou Pentateuco. O Gênesis conclui com José e seus irmãos no Egito, o Êxodo trata de Moisés conduzindo seus descendentes para fora do Egito em direção ao deserto do Sinai, enquanto o Levítico e Números falam de suas vidas no deserto. Em realidade, o nome hebreu do Livro dos Números é "No Deserto".
Quando os israelitas acampam na planície de Moab, além do Jordão a partir de Jericó, os moabitas pedem proteção contra eles propondo contratar um profeta de ocasião chamado Balaão. O rei moabita, Balac, envia mensageiros até ele, pede que os acompanhe até Moab e rogue uma maldição contra os intrusos. Em resposta, Balaão diz que primeiro deve consultar a Deus - referido por seus dois nomes principais, Javé e Eloim. Ele lhes diz: "Eu lhes trarei a resposta, como Javé me falar". Eloim vem então a ele (possivelmente em sonho) e lhe pergunta quem são esses homens. Balaão responde que são moabitas que lhe pedem que amaldiçoe os recém-chegados do Egito. Eloim lhe diz que não vá, pois esse povo é abençoado; Balaão, obedecendo, diz aos mensageiros que Javé lhe proibira de ir com eles. Quando os emissários moabitas retornam a segunda vez, Balaão diz que buscará novas orientações de Javé, e desta vez Eloim lhe diz que vá com eles, mas que faça apenas o que Ele lhe ordenar que faça. Balaão então encilha sua velha jumenta e parte com os moabitas (Nm 22,1-21).
Neste ponto, os estudiosos percebem uma mão diferente no texto, mas não chegam a um acordo sobre sua fonte. Alguns dizem que a primeira metade do capítulo é escrita pelo eloísta (o autor hipotético que favorece o nome de Eloim para Deus), e a partir do verso 22 é o relato do javista mais velho (que obviamente em geral se refere a Deus como Javé), embora na verdade, como acabei de observar, ambos os nomes divinos apareçam na primeira metade do capítulo, o mesmo acontecendo na segunda metade. Uma das razões para se atribuir a segunda metade ao javista é por retratar um animal falando, como a Serpente no Gênesis 3 (mas, como mencionei antes, há uma boa razão para pensar que a história da Serpente, com todos os outros capítulos próximos, não tenha nenhuma relação com o javista, sendo uma parte do Gênesis composta mais recentemente).
Outra idéia, favorecida pelos discípulos de Frank Moore Cross em Harvard, é que o javista que escreve a primeira parte, um escritor posterior, da época do cativeiro na Babilônia, é quem adiciona a parte referente à jumenta. Este último escritor é conhecido pelo complicado nome de "Historiador Deutoronômico", mas o chamaremos por "h.d.". Isto localiza a composição da história por volta de 560 a.C.5
De qualquer maneira, a história continua:
"A partida de Balaão despertou a ira de Eloim (ou "a ira de Javé" - as duas formas aparecem), e o Anjo de Javé pôsse-lhe no caminho como um satã contra ele" (Num. 22.22). Este foi um momento significativo. Deus havia se oposto às ações dos homens antes, porém agora, pela primeira vez, Ele, ou Sua manifestação angelical, é caracterizado por um adversário, um Satã.
Entretanto, a oposição divina não se dá com suavidade. Como mencionei, Balaão está montado em sua jumenta, e dois de seus servos o acompanham a pé. Porém, apenas a jumenta pode ver satã de pé com sua espada na mão. Ela desvia de repente da estrada adentrando o campo, o que leva Balaão a golpeá-la. Quando a jumenta e Balaão finalmente retornam para a estrada, esta se estreitou com paredes de vinhedos em ambos os lados. A jumenta dá uma guinada novamente, e arrasta o pé de Balaão contra uma das paredes, e Balaão a golpeia mais uma vez. O Anjo de Javé se adianta ainda mais e se coloca numa parte ainda mais estreita da estrada. Quando a jumenta percebe que não tem como dar a volta, ela simplesmente se deita com Balaão ainda montado. A esta altura Balaão estava completamente irado, e ele a golpeia intensamente com seu bastão.
Finalmente, Javé dá à jumenta o poder da fala, e ela pergunta a Balaão: "O que eu lhe fiz para que me golpeasse essas três vezes?". Balaão, sem mostrar surpresa a essa súbita capacidade de fala de sua jumenta favorita, replica: "Porque você me fez de tolo! Se eu tivesse uma espada em minha mão, eu a mataria agora mesmo!". A jumenta retrucou: "Não sou eu a sua jumenta, na qual você tem cavalgado toda sua vida até hoje? Eu o tenho tratado dessa maneira?". A única resposta possível de Balaão foi: "Não".
Javé então revê a estratégia de aparecer apenas para a jumenta e não para Balaão, e Ele abre os olhos de Balaão. Balaão vê, então, de repente, o Anjo de Javé de pé na estrada, com a espada na mão, desmonta da jumenta e se prostra no chão. O Anjo diz: "Por que você bateu três vezes em sua jumenta? Eu vim como satã, para interromper sua jornada, que me desagrada. A jumenta me viu e três vezes fugiu de mim e salvou sua vida. Se ela não tivesse feito isto, eu o teria matado e a teria deixado viva".
Balaão responde: "Eu pequei, mas foi apenas porque não sabia que você estava ali para me encontrar. Se isso o desagrada, eu voltarei para casa".
O Anjo de Javé respondeu: "Não, está bem, siga com os homens, mas fale apenas o que eu ordenar".
5 Representando o pensamento da escola de Harvard sobre "h.d." (Historiador Deutoronômico) encontramos Brian Peckham, History and prophecy: the development of late judasan literary traditions (ab Reference Library, Nova York: Doubleday, 1993). Uma compilação de ensaios sobre a questão é Those elusive deuteronomists, ed. Linda S. Shearing e Steven L. McKenzie (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1999). Recomendo também The Anchor Bible Dictionary, 6 vols. (Nova York, 1992), e os comentários da Anchor Bible sobre os livros individuais (todos publicados pela Doubleday). Existem, claro, outros comentários importantes da Bíblia, que estão listados nos volumes da Anchor Bible (ab).
Trecho de Anjos Caídos, de Harold Bloom
Por três mil anos, temos sido visitados por imagens de anjos. Essa longa tradição literária se expande da antiga Pérsia para o judaísmo, o cristianismo, o islamismo e as várias religiões americanas. Com a aproximação do milênio, nossa obsessão por anjos se intensificou. Mas esses anjos populares eram benignos, na verdade banais, até mesmo insípidos. A década de 1990 viu a publicação de vários livros sobre anjos, sobre contato e comunicação com anjos da guarda, sobre intervenção, cura e medicina angélicas, sobre números e cartas de oráculos angelicais - houve até "kits anjo" (é até difícil de se imaginar). Este Mundo Tenebroso, publicado originalmente em 1986, e sua continuação em 1989, Piercing the Darkness (Penetrando a escuridão), que descrevem a luta entre demônios e anjos na fictícia cidade universitária de Ashton, estiveram entre os mais vendidos no gênero chamado ficção cristã. Este Mundo Tenebroso vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares nos Estados Unidos. O Livro dos Anjos, de Sophy Burnham, editado originalmente pela Ballantine Books em 1990, esteve na lista dos mais vendidos do New York Times e é um dos livros a que freqüentemente se atribui o mérito de ter iniciado o próspero surto de livros de angelologia. Segundo o editor, o livro "conta não somente as extraordinárias histórias verdadeiras de encontros atuais com anjos, como também rastreia o entendimento e o estudo de anjos através da história e em diferentes culturas. Como são os anjos? Quem escolhem visitar? Por que aparecem muito mais vezes a crianças do que a adultos? Eloqüente relato de onde a terra e o céu se encontram, O Livro dos Anjos é um mergulho em busca dos mistérios e uma canção de louvor à vida." Em 1995, o popular Angelspeake: How to Talk with Your Angels (Angelíngua: Como falar com seus anjos), de Barbara Mark e Trudy Griswold, ofereceu um guia "prático" aos leitores. A década viu, também, a exibição de grande número de filmes cujos protagonistas eram anjos; para mencionar apenas alguns, Asas do Desejo (1988), Anjos Rebeldes (1995), Michael, Anjo e Sedutor (1996), Encontro Marcado (1998) e Dogma (1999). Havia também camisetas, canecas, cartões-postais, jóias e óculos de sol com anjos. De acordo com uma rápida pesquisa na Amazon.com, também não diminuiu de forma significativa a febre de anjos desde a passagem do milênio. Para citar apenas alguns livros recentes: Contacting Your Spirit Guide (Contactando seu espíritoguia), de 2005, Angels 101: An Introduction to Connecting, Working, and Healing with Angels (Uma introdução à maneira de se relacionar, trabalhar e curar com anjos), de 2006, e Angel Numbers (Números angélicos), de 2005, um guia de bolso para "significados angélicos de números, de 0 a 999". Existem também obsessões populares por anjos caídos, demônios e diabos, que só raramente são insípidos. O grande astro desse grupo, Satã, começou como o que agora chamaríamos de "um personagem literário" muito antes de sua apoteose no Paraíso Perdido, de John Milton. Seria melhor explicar precisamente o que quero dizer nessa introdução, já que muitas pessoas confundem problemas de representação literária com as questões bem diferentes de crença e descrença. Pode-se provocar um grande sentimento de injúria com a observação verdadeira de que o culto ocidental a seres divinos é baseado em vários exemplos distintos, porém relacionados entre si, de representação literária. O Javé (Jeová) da escritora J, primeira dos autores hebreus, é certamente um espantoso personagem literário, concebido com uma mistura de alta ironia e autêntico temor. O Jesus do Evangelho de Marcos pode não ser o primeiro retrato literário do filho de Maria, mas certamente se mostrou o mais influente. E o Alá do Corão é visivelmente um monologuista literário, já que sua voz fala todo o livro, em tonalidades que demonstram uma personalidade abrangente. Demônios pertencem a todas as épocas e a todas as culturas, mas anjos caídos e diabos emergem essencialmente de uma série quase contínua de tradições religiosas que começa com o zoroastrismo, a religião mundial dominante durante os impérios persas, e passa dele para o judaísmo na época do Cativeiro da Babilônia e no pós-cativeiro. Há uma transferência bem ambivalente de anjos maus do judaísmo tardio para o cristianismo inicial, e depois uma transformação positivamente ambígua das três tradições angélicas no islamismo, difícil de rastrear, precisamente porque sistemas neoplatônicos e alexandrinos como o hermetismo entram na mistura.
Turismo na essência
Há trinta semanas na lista dos mais vendidos, Comer, Rezar, Amar, da jornalista americana Elizabeth Gilbert, de 39 anos, narra a jornada gastronômica-espiritual-sexual da autora por três países – ou por três simpáticos estereótipos – Itália, Indonésia e Índia.
Viagem ao lugar-comum...Há trinta semanas na lista dos mais vendidos, Comer, Rezar, Amar, de Elizabeth Gilbert, narra a jornada gastronômico-espiritual-sexual da autora por três países – ou por três simpáticos estereótipos
O italiano é um tipão despreocupado e espontâneo, que cultiva os prazeres da mesa. O indiano é um guru em potencial, superior aos fatos comezinhos do plano terreno. O americano consegue o milagre de ser o perfeito oposto do italiano e do indiano ao mesmo tempo: sempre correndo atrás de dinheiro e sucesso, é um materialista sem tempo para os prazeres materiais. O leitor dirá que esses são estereótipos rasteiros, e a jornalista americana Elizabeth Gilbert, 39 anos, não discordaria. "Mas existe um fundo de verdade nos estereótipos", diz a autora do best-seller Comer, Rezar, Amar (tradução de Fernanda Abreu; Objetiva; 344 páginas; 39,90 reais), que já vendeu 4 milhões de exemplares no mundo todo (100 000 deles no Brasil) e chega nesta semana à trigésima aparição na lista dos mais vendidos de VEJA, em primeiro lugar na categoria não-ficção. O livro relata a jornada gastronômico-espiritual-sexual que a autora empreendeu, em 2003, por três países: Itália, Índia e Indonésia. Em cada um desses lugares, Elizabeth busca – e encontra – uma idéia pronta: a Itália é a terra do prazer; a Índia, a pátria da meditação; e a Indonésia (ou, mais especificamente, a Ilha de Bali), um paraíso de equilíbrio. No meio do caminho, sobram alguns lugares-comuns para o Brasil – em Bali, Elizabeth vai redescobrir o amor com um representante desse povo sensual e brejeiro. O curioso é que Comer, Rezar, Amar repisa esses estereótipos sem convertê-los em preconceitos odiosos ou reducionistas. São todos expressões da imensa simpatia de Elizabeth, a mais generosa das turistas.
ItTÁLIA "Bel far niente significa ‘a beleza de não fazer nada’. Essa é uma expressão ótima. Sempre foi um ideal prezado pelos italianos"
ÍNDIA "Você vai precisar de um guia em sua jornada. Se tiver sorte, encontrará um guru. É isso que os peregrinos têm vindo buscar na índia há séculos"
Falando com VEJA por telefone de sua casa em Nova Jersey, onde hoje mora com José, o maridão brasileiro (chamado de Felipe no livro), a autora concede que existam americanos descontraídos e italianos estressados. Mas, argumenta ela, o que dá caráter a uma cultura é a quantidade de "energia" que ela devota a diferentes atividades. "Será difícil encontrar outro povo que devote tanta energia à busca do prazer quanto o italiano", diz a autora. E acrescenta, rindo: "Talvez o brasileiro". A jornalista embarcou na sua viagem de um ano depois de um divórcio doloroso e estava disposta a manter-se afastada dos homens durante todo o período. Os prazeres da Itália, portanto, se restringiram à mesa – e ao aprendizado da língua, que encantou a aluna. "Meu marido já tentou me ensinar português, mas acho as duas línguas muito parecidas. Tenho a impressão de que perco meu italiano quando estudo português", diz Elizabeth.
A temporada indiana foi integralmente passada em um ashram – um retiro espiritual (resistir aos mosquitos indianos enquanto meditava é uma das provações espirituais narradas no livro). Em Bali, afinal, aparece o brasileiro José, aliás, Felipe. Também ele vinha de um divórcio – tem filhos na Austrália. Importava pedras preciosas brasileiras para trabalhá-las com artesãos indonésios (e hoje, nos Estados Unidos, segue comercializando esculturas, móveis, trecos balineses em geral, agora em sociedade com Elizabeth, em uma loja chamada Two Buttons). Não foi exatamente a primeira escolha da turista americana quando pensou em abdicar de seu voto de um ano de castidade. Ela chegou a paquerar um galês. Mas Felipe, aliás, José, acabou levando a melhor com suas cantadas originais. No livro, por exemplo, ele aparece alojando o rosto sob o braço de Elizabeth para depois declarar que gostava do seu "fedorzinho maravilhoso". É nesta mesma noite que ele a leva para a cama.
Como vai expresso no verbo do meio, Comer, Rezar, Amar é uma história de descoberta espiritual. Elizabeth, porém, afirma que a viagem não é necessária para chegar lá. "Se eu fosse mais disciplinada, poderia ter feito as mesmas descobertas na minha sala de estar", diz. Os temas místicos são tratados com uma sem-cerimônia cativante – onde mais se encontraria uma relação entre mosquitos e meditação transcendental? A seção sobre a Índia, porém, interessará menos aos que lêem o livro pelos seus aspectos, digamos, turísticos. Aviso aos céticos: Elizabeth é mística praticante, com certo colorido riponga. É uma espiritualidade sob medida para a eclética apresentadora Oprah Winfrey, que ajudou a catapultar o livro para as listas de best-sellers ao entrevistar a autora em seu programa. Resenhas na imprensa americana já alinharam Comer, Rezar, Amar à chamada Nova Era, o saco de gatos esotérico que mistura de tudo um pouco (e só um pouco de tudo), de bruxaria a budismo. "A princípio, eu resisti a esse rótulo. Acho a Nova Era uma coisa meio preguiçosa, um movimento sem rigor nas coisas que persegue", diz Elizabeth. Mas ela acaba admitindo que, se tem de ser classificada em algum escaninho, a Nova Era é inescapável. "A gente sempre esperneia para escapar aos rótulos. Mas a verdade é que alguns rótulos nos definem muito bem", diz Elizabeth, mais uma vez expressando sua fé nos estereótipos.
O estereótipo do americano não chega a comparecer no livro. Mas Elizabeth diz tê-lo visto em uma rua de Nova York, pouco tempo depois de ter voltado da sua viagem. O sujeito fazia quatro coisas ao mesmo tempo: passeava com o cachorro, falava ao celular, lia um jornal e comia um sanduíche. "Seria demais exigir que ele fizesse uma refeição italiana, com vários pratos", diz. "Mas tive vontade de pedir que ele ao menos mastigasse o sanduíche." Elizabeth parece ter aprendido a fazer uma coisa de cada vez. No momento, deixou em suspenso o trabalho em seu próximo livro e está engajadíssima na campanha presidencial de Barack Obama.
Trecho Comer, Rezar, Amar, de Elizabeth Gilbert
Eu queria que Giovanni me beijasse.
Ah, mas são tantos os motivos que fariam disso uma péssima idéia... Para começar, Giovanni é dez anos mais novo do que eu, e – como a maior parte dos rapazes italianos de vinte e poucos anos – ainda mora com a mãe. Só esses dois fatos já fazem dele um parceiro romântico improvável para mim, já que sou uma americana de trinta e poucos anos que trabalha, acaba de passar por um casamento falido e por um divórcio arrasador e interminável, imediatamente seguido por um caso de amor apaixonado que terminou com uma dolorosa ruptura. Todas essas perdas, uma atrás da outra, deixaram em mim uma sensação de tristeza e fragilidade, e a impressão de ter mais ou menos 7 mil anos de idade. Por uma simples questão de princípios, eu não imporia essa minha pessoa desanimada, derrotada e velha ao adorável, inocente Giovanni. Sem falar que eu finalmente havia chegado à idade em que uma mulher começa a questionar se a maneira mais sensata de superar a perda de um lindo rapaz de olhos castanhos é mesmo levar outro para sua cama imediatamente. É por isso que já faz muitos meses que estou sozinha. É por isso, na verdade, que decidi passar este ano inteiro sozinha.
Diante do que o observador mais arguto poderá perguntar: "Então por que você veio para a Itália?"
E tudo que posso responder – sobretudo quando olho para o belo Giovanni do outro lado da mesa – é: "Boa pergunta."
Giovanni é meu parceiro de intercâmbio de línguas. Isto pode parecer uma insinuação, mas infelizmente não é. Tudo o que realmente significa é que nós nos encontramos algumas noites por semana aqui em Roma para praticar o idioma um do outro. Primeiro conversamos em italiano, e ele é paciente comigo; em seguida, conversamos em inglês, e eu sou paciente com ele. Descobri Giovanni algumas semanas depois de ter chegado a Roma, graças ao grande cybercafé da Piazza Barbarini, do outro lado da rua, em frente àquele chafariz com a escultura de um homem com rabo de peixe soprando sua concha. Ele (Giovanni, não o homem com rabo de peixe) fixara um anúncio no quadro de avisos explicando que um italiano nativo estava procurando alguém que falasse inglês para treinar conversação nas duas línguas. Logo ao lado do seu anúncio havia outro com o mesmo pedido, absolutamente idêntico em cada palavra, e até na fonte usada. A única diferença era a informação para contato. Um dos anúncios trazia o endereço eletrônico de um tal Giovanni; o outro tinha o nome de um tal Dario. Mas até o número do telefone residencial era o mesmo.
Usando meus aguçados poderes de intuição, mandei um e-mail para os dois homens ao mesmo tempo, perguntando, em italiano: "Será que vocês são irmãos?"
Foi Giovanni quem respondeu com este texto muito provocativo: "Melhor ainda. Gêmeos!"
Sim – muito melhor. Gêmeos idênticos de 25 anos, altos, morenos e lindos, conforme vim a descobrir, com aqueles gigantescos olhos castanhos de pupilas líquidas que os italianos têm e que simplesmente me tiram o chão. Depois de conhecer os rapazes pessoalmente, comecei a me perguntar se por acaso eu deveria ajustar um pouquinho minha regra quanto a permanecer solteira durante este ano. Por exemplo, talvez eu pudesse permanecer totalmente solteira exceto pelo fato de ter dois lindos irmãos italianos de 25 anos como amantes. Isso me lembrava um pouco um amigo meu que é vegetariano, mas come bacon, e no entanto… Eu já estava escrevendo a minha carta para o fórum de alguma revista masculina:
Em meio à penumbra bruxuleante iluminada pelas velas do café romano, era impossível dizer de quem eram as mãos que acariciavam…
Mas não.
Não, não, não.
Interrompi a fantasia no meio. Aquele não era o momento para eu arrumar uma história de amor e (conseqüência óbvia e inevitável) complicar ainda mais minha já tão enrolada vida. Aquele era o momento para eu procurar o tipo de cura e paz que só podem vir da solidão.
De todo modo, àquela altura, em meados de novembro, o tímido e estudioso Giovanni e eu já havíamos nos tornado grandes amigos. Quanto a Dario – o mais extrovertido e festeiro dos dois irmãos –, eu o apresentei à minha encantadora amiguinha sueca, Sofie, e o modo como eles têm compartilhado as suas noites em Roma é outro tipo completamente diferente de intercâmbio. Mas Giovanni e eu só fazemos conversar. Bom, comer e conversar. Já faz várias agradáveis semanas que temos comido e conversado, dividindo pizzas e gentis correções gramaticais, e a noite de hoje não foi nenhuma exceção. Uma noite maravilhosa regada a novos idiomas e mozzarella fresca.
Agora é meia-noite e o tempo está enevoado, e Giovanni me acompanha até meu apartamento por aquelas ruelas de Roma que serpenteiam de forma natural em volta dos antigos prédios como pequenos riachos coleando ao redor das sombras formadas pelos densos bosques de ciprestes. Agora estamos diante da minha porta. Estamos de frente um para o outro. Ele me dá um abraço caloroso. A coisa já evoluiu; durante as primeiras semanas, ele só fazia apertar minha mão. Acho que, se eu ficasse na Itália por mais três anos, poderia até ser que ele tomasse coragem para me beijar. Por outro lado, ele poderia simplesmente me beijar agora mesmo, esta noite, aqui mesmo junto à minha porta… ainda há uma chance… quero dizer, nossos corpos estão colados sob o luar… e é claro que isso seria um erro terrível… mas mesmo assim o fato de ele poder realmente fazer isso agora é uma possibilidade tão maravilhosa… ele poder simplesmente se curvar… e… e…
Que nada.
Ele solta o abraço.
– Boa-noite, cara Liz – diz ele.
– Buona notte, caro mio – respondo. Subo as escadas até meu apartamento no quarto andar, sozinha. Entro no meu pequenino quitinete, sozinha. Fecho a porta atrás de mim. Mais uma noite solitária em Roma. Mais uma longa noite de sono pela frente, sem ninguém nem nada na minha cama a não ser uma pilha de guias de conversação e dicionários de italiano.
Estou sozinha, inteiramente sozinha, completamente sozinha.
Ao absorver essa realidade, largo minha bolsa, caio de joelhos e encosto a testa no chão. Ali, ofereço ao universo uma fervorosa oração de agradecimento.
Primeiro, em inglês.
Em seguida, em italiano.
E então – só para ter certeza – em sânscrito.

Pacto misterioso
O novo romance do espanhol Carlos Ruiz Zafón, O Jogo do Anjo, se passa em Barcelona. Um jovem pobre deseja se tornar um escritor respeitável e faz uma espécie de pacto com um misterioso editor. Com as desgraças que advêm do acordo, o jovem fica com saudade do tempo em que era obscuro.
Livros Mais ou menos adulto...Cheio de mistérios góticos e reviravoltas, o novo romance do autor de A Sombra do Vento é pueril – mas vai agradar a muito marmanjão
No site oficial do espanhol Carlos Ruiz Zafón, o best-seller A Sombra do Vento é apresentado como "seu primeiro romance para adultos" – o autor tentara a sorte antes com uma trilogia de obras juvenis. Supõe-se que O Jogo do Anjo (tradução de Eliana Aguiar; Objetiva/Suma de Letras; 416 páginas; 39,90 reais), que chega nesta semana às livrarias brasileiras, caia na mesma categoria – um romance "adulto". De fato, tem certo material pouco recomendável para crianças: cenas eróticas, ainda que tímidas, e um tanto de violência. Mas, depois do fenômeno Harry Potter, a fronteira já difusa entre o "adulto" e o "juvenil" foi definitivamente apagada. Os livros de J.K. Rowling, afinal, destinavam-se à garotada, mas eram lidos com prazer por muito marmanjão. A Menina que Roubava Livros, do australiano Markus Zusak, também fez sucesso nessa faixa indecisa. E o mesmo vale agora para O Jogo do Anjo: seu entrecho gótico e aventuresco é francamente pueril – mas quem se importa?
O novo livro tem um climão de mistério bastante envolvente, embora Zafón exagere nas cenas de ação improvável – muitas lutas em que a navalha pára sempre a centímetros do peito do herói – e nas metáforas duvidosas ("o primeiro suspiro da aurora roçou a janela"). A história se passa nos anos 20, na mesma Barcelona de cores fantasmagóricas de A Sombra do Vento (cuja ação tem lugar décadas mais tarde, no pós-guerra). "Nas minhas histórias, Barcelona é mais do que um cenário: é uma personagem", disse Zafón a VEJA. Como o livro anterior, esta é uma história sobre o fascínio e a maldição da literatura. O protagonista, David Martín, é um jovem pobre que deseja se tornar um escritor respeitável, mas ganha a vida com romances de mistério assinados com pseudônimo. Desprezado por críticos e ignorado pelo público, seu único livro "sério" tem de buscar refúgio no Cemitério dos Livros Esquecidos, o fascinante santuário de obras obscuras ou perseguidas que já aparecia em A Sombra do Vento. Para piorar a situação, Martín tem um tumor inoperável que ameaça levá-lo à morte. É quando surge uma salvadora proposta – ou um pacto, ao modo de Fausto – do misterioso editor Andreas Corelli. As desgraças que advêm do acordo levarão Martín a ter saudade do tempo em que era um escritor de ingênuas tramas de aventura. De certa forma, esta é a chave do livro: a Literatura, como maiúscula adulta, tem qualquer coisa de maldito. O leitor estará em terreno seguro se divertindo com os enredos rocambolescos de Zafón.
O cemitério dos livros esquecidos
"O que está vendo aqui é a soma de séculos de livros perdidos e esquecidos, livros que estavam condenados a ser destruídos e silenciados para sempre, livros que preservam a memória e a lama de tempos e prodígios que ninguém mais lembra. Nenhum de nós, nem os mais velhos, sabe exatamente quando foi criado ou por quem. Provavelmente, é quase tão antigo quanto a própria cidade e foi crescendo com ela, à sua sombra."
Trecho de O jogo do anjo, de Carlos Ruiz Zafon
PRIMEIRO ATO
A Cidade dos Malditos
Um escritor nunca esquece a primeira vez em que aceita algumas moedas ou um elogio em troca de uma história. Nunca esquece a primeira vez em que sente o doce veneno da vaidade no sangue e começa a acreditar que, se conseguir disfarçar sua falta de talento, o sonho da literatura será capaz de garantir um teto sobre sua cabeça, um prato quente no final do dia e aquilo que mais deseja: seu nome impresso num miserável pedaço de papel que certamente vai viver mais do que ele. Um escritor está condenado a recordar esse momento porque, a partir daí, ele está perdido e sua alma já tem um preço.
Minha primeira vez chegou num dia distante de dezembro de 1917. Tinha na época 17 anos e trabalhava em La Voz de la Industria, um jornal decadente que definhava num edifício cavernoso que, em tempos passados, tinha abrigado uma fábrica de ácido sulfúrico e cujas paredes ainda transpiravam aquele vapor corrosivo que consumia o mobiliário, a roupa, o ânimo e até a sola dos sapatos. A sede do jornal ficava atrás do bosque de anjos e cruzes do cemitério de Pueblo Nuevo e, de longe, a silhueta do edifício se confundia com a dos mausoléus, recortando-se contra um horizonte espetado por centenas de chaminés e fábricas que teciam um crepúsculo vermelho e negro estendido perpetuamente sobre Barcelona.
Na noite que mudaria o rumo de minha vida, o subdiretor do jornal, dom Basilio Moragas, achou por bem convocar-me, um pouco antes do fechamento da edição, ao cubículo escuro e encravado no fundo da redação, que fazia as vezes de escritório e de área para fumantes de charutos havana. Dom Basilio era um homem de aspecto feroz e bigode farto que não estava para brincadeiras e adotava a teoria de que tanto o uso liberal de advérbios quanto o excesso de adjetivos eram coisa de pervertidos e de gente com deficiências vitamínicas. Quando descobria um redator inclinado à prosa mais floreada, tratava de transferi- lo para a redação de obituários por três semanas. Se, depois do castigo, o indivíduo reincidisse, dom Basilio o mandava para a seção de prendas do lar para todo o sempre. Todos tínhamos pavor dele, e ele sabia disso.
- Mandou me chamar, dom Basilio? - arrisquei timidamente.
O subdiretor me olhou de canto de olho. Entrei no escritório, que cheirava a suor e tabaco, nessa ordem. Dom Basilio ignorou minha presença e continuou revisando um dos artigos que estavam na escrivaninha, lápis vermelho em punho. Durante alguns minutos, o subdiretor metralhou o texto, corrigindo, quando não amputando, e resmungando como se eu não estivesse ali. Sem saber o que fazer, vi que havia uma cadeira encostada na parede e fiz menção de sentar.
- Quem disse que podia se sentar? - murmurou dom Basilio, sem levantar os olhos do texto.
Levantei apressadamente e contive a respiração. O subdiretor suspirou, deixou cair o lápis vermelho e reclinou-se em sua poltrona para examinar-me como se eu fosse um traste imprestável.
- Me disseram que você escreve, Martín.
Engoli em seco e quando abri a boca, só o que saiu foi um ridículo fio de voz.
- Bem, um pouco, quer dizer, não sei... ou seja, sim, escrevo...
- Espero que escreva melhor do que fala. Mas escreve o quê, se não for demais perguntar?
- Histórias policiais. Quero dizer...
- Já peguei a idéia.
O olhar com que dom Basílio me brindou é indescritível. Se eu tivesse dito que me dedicava a fazer figurinhas de presépio com esterco fresco teria obtido o triplo de entusiasmo. Suspirou de novo e deu de ombros.
- Vidal diz que o senhor não é de todo mau. Que se destaca do resto. Claro que, com a competência que se vê por essas bandas, também não é preciso ser grande coisa. Mas se Vidal falou.
Pedro Vidal era a estrela literária de La Voz de la Industria. Escrevia uma crônica semanal na editoria de polícia, que constituía a única coisa que merecia ser lida em todo o jornal, e era autor de uma dezena de livros de suspense sobre gângsteres do bairro do Raval vivendo em promiscuidade com damas da alta sociedade, os quais lhe garantiram uma modesta notoriedade. Metido invariavelmente em impecáveis ternos de seda e reluzentes mocassins italianos, Vidal tinha os traços e os gestos de um galã de sessão da tarde: cabelo louro sempre bem penteado, bigode espetado e o sorriso fácil e generoso de quem se sente bem na própria pele e no mundo. Provinha de uma dinastia de imigrantes que tinha feito fortuna nas Américas com negócios de açúcar e que, na volta à Espanha, tinha cravado os dentes numa suculenta fatia do plano de eletrificação da cidade. Seu pai, o patriarca do clã, era um dos acionistas majoritários do jornal, e dom Pedro usava a redação como pátio de recreio para matar o tédio de nunca, nem um único dia de sua vida, ter trabalhado por necessidade. Pouco importava que o diário perdesse tanto dinheiro quanto os automóveis que começavam a circular pelas ruas de Barcelona perdiam óleo: com abundância de títulos de nobreza, a dinastia dos Vidal dedicava-se agora a colecionar bancos e mansões do tamanho de pequenos principados no Ensanche.
Pedro Vidal foi a primeira pessoa a quem mostrei os esboços que escrevia quando era apenas um menino e trabalhava entregando café e cigarros na redação. Sempre teve tempo para mim, para ler meus escritos e dar bons conselhos. Com o tempo, chamou-me para ser seu assistente e permitia que datilografasse seus textos. Certo dia anunciou que, se queria mesmo apostar meu destino na roleta-russa da literatura, estava disposto a me ajudar e a guiar meus primeiros passos. Fiel à palavra dada, tinha me jogado nas garras de dom Basilio, o cão de guarda do jornal.
- Vidal é um sentimental que ainda acredita em lendas profundamente antiespanholas, como a meritocracia, e em dar oportunidade a quem merece e não ao apadrinhado da vez. Rico como é, pode dar uma de lírico pelo mundo afora. Se tivesse um centésimo da grana que sobra para ele, teria me dedicado a escrever sonetos, e os passarinhos viriam comer na minha mão, fascinados por minha bondade e meu encanto.
- O sr. Vidal é um grande homem - protestei eu.
- É mais do que isso. É um santo porque, apesar dessa sua pinta de morto de fome, há semanas que ele me aporrinha com exemplos de como é talentoso e trabalhador o caçula da redação. Ele sabe que, no fundo, sou um sentimental e, além do mais, garantiu que, se eu lhe der uma oportunidade, ele me dará uma caixa de havanas. E se Vidal pede, para mim é como se Moisés descesse do monte Sinai com os Dez Mandamentos numa mão e a verdade revelada na outra. De modo que, concluindo, como é Natal e para que seu amigo feche a porra da matraca de uma vez por todas, vou convidá-lo para estrear como os heróis: contra a corrente dos ventos e das marés.
- Muitíssimo obrigado, dom Basilio. Garanto que não vai se arrepender de...
- Menos, meu caro. Vejamos o que pensa do uso generoso e indiscriminado de advérbios e adjetivos...
- Que é uma vergonha e deveria ser crime previsto no código penal - respondi com a convicção de um crente militante.
Dom Basilio concordou com entusiasmo.
- Muito bem, Martín. Tem prioridades claras. Os que sobrevivem nessa profissão são os que têm prioridades e não os que têm princípios. Eis o plano. Pode sentar e trate de entender, pois não vou repetir duas vezes.
O plano era o seguinte. Por motivos que dom Basilio não considerou oportuno esclarecer, a última página da edição dominical, tradicionalmente reservada para um relato literário ou de viagem, tinha caído na última hora.
Ameaça à superpotência
Em O Mundo Pós-Americano, Fareed Zakaria, editor da revista Newsweek International e observador arguto do panorama contemporâneo, analisa o novo cenário global – em que países como a Índia e a China ganham espaço e ameaçam o monopólio americano. Na obra, o autor mantém-se distante tanto da americanofobia como da americanolatria.
O mundo sem dono...O modelo americano triunfou, mas os Estados Unidos perdem espaço para países como China e Índia. Fareed Zakaria analisa o novo cenário global
Fareed Zakaria, editor da revista Newsweek International e responsável por uma coluna semanal sobre política estrangeira, é, como demonstra seu novo livro, O Mundo Pós-Americano (tradução de Pedro Maia Soares; Companhia das Letras; 312 páginas; 49 reais), um observador arguto do panorama contemporâneo. Ele conta, para tanto, com duas vantagens: a de escrever desde o epicentro do mundo em vias de globalização, os Estados Unidos; e a de ter crescido no que era ainda há pouco uma de suas periferias mais atrasadas, a Índia. A sinergia proporcionada por tal combinação lhe permite acompanhar o presente momento do país seja como um insider, seja como um estrangeiro. Mantendo-se eqüidistante tanto da americanofobia como da americanolatria, seu enraizamento prévio no antigo Terceiro Mundo também o impede de superestimar os demais países. E, se o título do volume sugere uma preferência pelos prognósticos, Zakaria de fato se concentra mais em descrever minuciosamente o cenário de hoje – as linhas de força que prevalecem agora –, esboçando os traços gerais da história que o precede e explica.
Ele começa pelo paradoxo característico dos tempos que correm: como é que, num mundo marcado por guerras, terrorismo e ameaças diversas, o que se tem visto durante as duas últimas décadas é não o colapso da ordem ou um mergulho da maioria das nações na pauperização, mas, sim, populações em número crescente emergindo de miséria ancestral? Afinal, como a China e a própria Índia provam em grande escala, nunca antes a vida material de tantos melhorou de forma tão decisiva em tão pouco tempo. (E, apesar da atual crise, cujos piores efeitos só se revelaram após a publicação de O Mundo Pós-Americano, tais sucessos não parecem reversíveis.) Como isso pôde acontecer? O autor atribui o resultado a dois fatores principais: o abandono, depois da queda da União Soviética, de sistemas inviáveis, seguido da adesão ao livre mercado; e uma relativa (e talvez temporária) independência da economia em relação à política. Seja como for, é a entrada de novos agentes, de bilhões de novos produtores-consumidores, na economia global que, segundo Zakaria, estaria ameaçando o monopólio americano de poder e influência e apontando para uma era pós-americana, na qual a margem de manobra da única superpotência diminuiria diante de rivais encabeçados pela China ou de aliados potenciais, como a Índia. Não se trata, ele nos assegura, de triunfo do antiamericanismo, uma das formas assumidas pela antimodernidade. É mais o caso, aliás, de uma adesão às virtudes da civilização americana que vários países vêm imitando, aperfeiçoando e variando com o intuito preciso de competir com sua matriz.
Logo antes de observar que "a proporção de pessoas que vivem com 1 dólar ou menos por dia despencou de 40% em 1981 para 18% em 2004", que "só o crescimento da China tirou mais de 400 milhões de pessoas da pobreza", Zakaria ilustra essa mescla de emulação e competição com o modelo americano através dos seguintes exemplos: "O edifício mais alto do mundo está agora em Taipei e será superado, em breve, por um em construção em Dubai. A maior empresa de capital aberto do mundo é chinesa. O maior avião do mundo está sendo fabricado na Rússia e na Ucrânia, e as maiores fábricas estão todas na China. Londres está se tornando o principal centro financeiro e os Emirados Árabes Unidos abrigam o fundo de investimentos mais bem-dotado. Ícones outrora essencialmente americanos", ele arremata, "foram apropriados por estrangeiros".
Embora o autor abrace perspectivas até certo ponto otimistas, seu enfoque não deixa de ser nuançado e realista. Convém, no entanto, lembrar que, se o livro de Zakaria se beneficia dos conhecimentos de alguém que vem de fora dos Estados Unidos, seu público-alvo, o leitor que ele tem, sobretudo em mente é, ainda assim, o americano. Mais para o bem que para o mal, a obra é menos um estudo desinteressadamente acadêmico do que uma intervenção que ambiciona pesar na política exterior dos Estados Unidos. Vale a pena, assim, situar o autor no amplo espectro do debate de lá. Crítico da administração prestes a deixar o poder, em particular do que, subjazendo à Guerra do Iraque, se convencionou chamar de sua arrogância e unilateralismo, Zakaria tampouco se associa a seus críticos mais radicais. Nem isolacionista nem aliada aos que culpam o país por todos os achaques do planeta, a dele pode ser ouvida como uma voz que, moderada, prega menos a alteração completa de curso do que sua sintonização mais fina e sutil.
Trecho de O Mundo Pós-Americano, de Fareed Zakaria
Este livro não é sobre o declínio dos Estados Unidos da América, mas sobre a ascensão de todos os outros países. Trata da grande transformação que está ocorrendo em todo o mundo, uma transformação que, embora discutida com muita freqüência, continua mal compreendida. Isso é natural. As mudanças, até mesmo a dos mares, acontecem gradualmente. Embora falemos de uma nova era, o mundo parece ser aquele com que estamos familiarizados. Mas, na verdade, está muito diferente.
Houve três mudanças de poder tectônicas nos últimos quinhentos anos, alterações fundamentais na distribuição de poder que reformularam a vida internacional - sua política, sua economia e sua cultura. A primeira foi a ascensão do mundo ocidental, um processo que começou no século XV e se acelerou imensamente no final do século XVIII. Ela produziu a modernidade, tal como a conhecemos: ciência e tecnologia, comércio e capitalismo, as revoluções agrícola e industrial. Produziu também o prolongado domínio político das nações do Ocidente.
A segunda mudança, que aconteceu nos últimos anos do século XIX, foi a ascensão dos Estados Unidos. Logo depois de se industrializar, os Estados Unidos se tornaram a nação mais poderosa desde a Roma imperial, e a única mais forte do que qualquer combinação provável de outras nações. Durante boa parte do último século, os Estados Unidos dominaram a economia, a política, a ciência e a cultura mundiais. Nos últimos vinte anos, esse domínio foi sem rival, um fenômeno inédito na história moderna.
Estamos agora passando pela terceira grande mudança da era moderna. Ela poderia ser chamada de "a ascensão do resto". Ao longo das últimas décadas, países de todo o mundo vêm experimentando taxas de crescimento econômico que eram outrora impensáveis. Embora tenham passado por elevações e quedas, a tendência geral tem sido indiscutivelmente para cima. Esse crescimento tem sido mais visível na Ásia,mas não está mais restrito a ela. Por isso, chamar essa mudança de "ascensão da Ásia" não a descreve corretamente. Em 2006 e 2007, 124 países cresceram a uma taxa de 4% ou mais. Esse número inclui mais de trinta países da África, dois terços do continente. Antoine van Agtmael, o administrador de fundos que cunhou o termo "mercados emergentes", identificou as 25 empresas que serão provavelmente as próximas grandes multinacionais. Sua lista contém quatro companhias do Brasil, México, Coréia do Sul e Taiwan; três da Índia; duas da China e uma de Argentina, Chile,Malásia e África do Sul.
Olhemos em volta. O edifício mais alto do mundo está agora em Taipei e será superado, em breve, por um em construção em Dubai. O homem mais rico do mundo é mexicano e a maior empresa de capital aberto é chinesa. O maior avião do mundo está sendo fabricado na Rússia e na Ucrânia, a maior refinaria está em construção na Índia, e as maiores fábricas estão todas na China. Sob qualquer critério, Londres está se tornando o principal centro financeiro e os Emirados Árabes Unidos abrigam o fundo de investimentos mais bem dotado. Ícones outrora essencialmente americanos foram apropriados por estrangeiros. A maior roda- gigante está em Cingapura. O maior cassino não está em Las Vegas, mas em Macau, que já superou a cidade americana em receita anual de jogo. A maior indústria cinematográfica, em termos de filmes produzidos e ingressos vendidos, é Bollywood, na Índia. Até a maior atividade esportiva americana - comprar em shopping - tornou-se global. Dos dez maiores shoppings do mundo, apenas um está nos Estados Unidos; o maior de todos está em Pequim. Listas como essas são arbitrárias, mas chama a atenção que há somente dez anos os Estados Unidos estavam no topo de muitas dessas categorias, se não da maioria.
Pode parecer estranho centrar-se na prosperidade crescente quando ainda existem centenas de milhões de pessoas vivendo na mais profunda miséria. Mas, na verdade, a proporção de pessoas que vivem com 1 dólar ou menos por dia despencou de 40% em 1981 para 18% em 2004, e estima-se que cairá para 15% em 2015. Só o crescimento da China tirou mais de 400 milhões de pessoas da pobreza. A miséria está diminuindo em países que abrigam 80% da população mundial. Os cinqüenta países em que vivem as pessoas mais pobres do mundo são casos gravíssimos que precisam de atenção urgente. Nos outros 142 - que incluem China, Índia, Brasil, Rússia, Indonésia, Turquia, Quênia e África do Sul -, os pobres estão sendo lentamente absorvidos por economias produtivas e crescentes. Pela primeira vez na história, estamos testemunhando um genuíno crescimento global. Isso está criando um sistema internacional em que países de todos os cantos do mundo não são mais objetos ou observadores, mas atores por seus próprios méritos. É o nascimento de uma ordem realmente global.
Um aspecto relacionado dessa nova era é a difusão do poder dos Estados para outros atores. O "resto" que está em ascensão inclui muitos atores que não são nações. Grupos e indivíduos ganharam poder e a hierarquia, a centralização e o controle estão sendo minados. Funções que outrora eram controladas pelos governos são agora compartilhadas com organismos internacionais como a Organização Mundial do Comércio e a União Européia. Grupos não-governamentais proliferam todos os dias ocupando-se de todas as questões em todos os países. Corporações e capitais mudam de lugar em lugar, em busca da melhor localização para fazer negócios, recompensando alguns governos e punindo outros. Terroristas como os da Al Qaeda, cartéis das drogas, insurgentes e milícias de todos os tipos encontram espaço para atuar nos escaninhos do sistema internacional. O poder se afasta dos Estados-nações, para cima, para baixo e para os lados. Nessa atmosfera, as aplicações tradicionais do poder nacional, tanto econômicas quanto militares, tornaram-se menos eficazes.
É provável que o sistema internacional que está surgindo seja bem diferente daqueles que o precederam. Há cem anos, havia uma ordem multipolar comandada por uma coleção de governos europeus, com alianças que mudavam constantemente, rivalidades, erros de cálculo e guerras. Depois veio o duopólio bipolar da Guerra Fria, mais estável em muitos sentidos, mas no qual as superpotências reagiam e exageravam nessa reação a cada movimento da outra. A partir de 1991, vivemos sob um império americano, um mundo unipolar ímpar em que a economia global aberta se expandiu e se acelerou excepcionalmente. Essa expansão está agora impelindo a próxima mudança na natureza da ordem internacional.
Na esfera político-militar, continuamos no mundo de uma única superpotência. Mas, em todas as outras dimensões - industrial, financeira, educacional, social, cultural -, a distribuição do poder está mudando, afastando-se do domínio americano. Isso não significa que estejamos entrando num mundo antiamericano.Mas estamos nos dirigindo para um mundo pós- americano, definido e dirigido a partir de muitos lugares e por muita gente.
Que tipos de oportunidades e desafios representam essas mudanças? O que elas pressagiam para os Estados Unidos e sua posição dominante? Como será essa nova era em termos de guerra e paz, economia e negócios, idéias e cultura?
Em suma,o que significará viver num mundo pós-americano?
Direto do original
Os Irmãos Karamázov, o último romance de Dostoievski ganha uma nova — e boa — tradução do russo. O livro é uma ambiciosa palavra final sobre os temas que obcecavam o escritor desde suas primeiras obras, publicadas nos anos 1840: o bem, o mal e a trágica liberdade humana para escolher entre um e outro.
O mal em todas as suas cores...Os Irmãos Karamázov, o mais ambicioso romance de Dostoievski, ganha uma nova – e boa – tradução do russo
Dostoievski é o escritor cristão mais admirado pelos ateus. O alemão Friedrich Nietzsche, que tinha o cristianismo na conta de uma filosofia moral para escravos, considerava o escritor russo o único psicólogo com o qual aprendera alguma coisa. Sigmund Freud também o admirava e dedicou um ensaio ao tema do parricídio na obra do escritor. Em seu conhecido ensaio O Existencialismo É um Humanismo, de 1946, o francês Jean-Paul Sartre fundamentava toda a sua filosofia em uma frase atribuída a Dostoievski: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido". Que autores tão opostos às idéias de Dostoievski tenham admirado sua obra é um testemunho da grandeza de sua ficção. Uma nova tradução de seu último livro, Os Irmãos Karamázov (Editora 34; 1 040 páginas, em dois volumes; 98 reais), feita por Paulo Bezerra, está chegando às livrarias brasileiras. Lançado no fim de 1880 – pouco antes da morte do autor, em janeiro do ano seguinte –, o romance é uma ambiciosa palavra final sobre os temas que obcecavam o escritor desde suas primeiras obras, publicadas nos anos 1840: o bem, o mal e a trágica liberdade humana para escolher entre um e outro.
As traduções anteriores de Os Irmãos Karamázov costumavam vir de outras línguas, especialmente do francês (em 1944, o tradutor Boris Schnaiderman fez sua temerária estréia no ofício, ao verter a última obra de Dostoievski direto do russo – mas nunca quis reeditar a tradução, que considerou falha). A tradução de Paulo Bezerra baseia-se em uma edição crítica da obra de Dostoievski realizada por um time de filólogos russos nos anos 70 – buscava-se, então, corrigir os cortes realizados pelas censuras czarista e stalinista. É, de acordo com o posfácio do tradutor, "a única efetivamente integral em língua portuguesa". Bezerra também buscou respeitar o estilo "às vezes meio tosco" do original. Dostoievski não era propriamente um cultor do mot juste, a palavra exata (o que talvez explique o desprezo que Nabokov, o estilista de Lolita, nutria por Crime e Castigo e Os Irmãos Karamázov). Mas poucos o superam na criação de personagens que vivem no extremo da condição humana – humilhados, atormentados, torturados pela própria personalidade mesquinha.
Tal é o caso da família Karamázov. O pai, Fiódor, é um bêbado e um bufão que conseguiu acumular alguma fortuna graças sobretudo ao matrimônio com mulheres de melhor extração social. Teve três filhos: Dmitri (ou Mítia), do primeiro casamento, e Ivan e Alieksiêi (ou Aliócha), do segundo (e, ao que tudo indica, seria ainda o pai do criado Smerdiakóv, filho da idiota da vila). Negligente, abandonou-os todos. Violento e lascivo, Dmitri saiu ao pai – e disputa com ele os favores de Grúchenka, jovem mulher de má fama. Aliócha é um místico. Vive em um mosteiro ortodoxo, onde segue as orientações do caridoso monge Zossima. Ivan é o mais filosófico e especulativo, um livre-pensador que parece ironizar todos os sistemas religiosos ou filosóficos: flerta com o ateísmo, mas também discute teologia de igual para igual com os monges do mosteiro onde vive seu irmão mais novo, Aliócha. O narrador do romance confere a esse último a distinção de herói da história, mas Ivan é uma figura mais marcante. O capítulo mais conhecido e celebrado do romance, "O grande inquisidor", deve-se a ele. Trata-se de um poema de Ivan (ou, antes, do enredo de um poema que ele deseja escrever, já que não está em versos), no qual Jesus retorna à Terra em Sevilha, no século XVI, e acaba preso pela Inquisição espanhola.
Na famosa frase citada em O Existencialismo É um Humanismo, Sartre faz uma paráfrase meio malandra do pensamento de Ivan (e ainda o atribui ao próprio Dostoievski, que é algo como creditar a Machado de Assis as teorias sociais doidivanas de Quincas Borba). A frase não aparece daquela forma no livro. O que Ivan argumenta é que, se o homem perder sua fé na imortalidade, tudo será permitido, "até a antropofagia". Vários personagens glosam essas palavras ao longo do livro – inclusive o próprio Diabo, no meio de um delírio de Ivan –, o que faz desta uma espécie de idéia condutora da trama. Quando Fiódor, o patriarca dos Karamázov, é assassinado e Dmitri surge como o principal suspeito, essa questão moral abstrata ganha uma premência incontornável, que muito atormentará Ivan.
Dostoievski não era apenas um crente fervoroso (ainda que torturado): também foi um exaltado nacionalista russo, sempre desconfiado de qualquer inclinação "européia" (no pólo oposto da paisagem intelectual russa do período, encontrava-se o cosmopolita Turguêniev, autor de Pais e Filhos). "Ele é russo demais para mim", dizia o escritor polonês-britânico Joseph Conrad. A exaltação ideológica e mística dos personagens de Dostoievski talvez tenha mesmo qualquer coisa de tipicamente "russo". Mas sua obra é também incomodamente universal. A existência do mal, que tanto angustia Ivan, forma com o bem supremo representado por Deus uma equação insolúvel. E ainda mais trágico é que o ateísmo tampouco é uma resposta.
A inquisição encontra Cristo
"Em meio a trevas profundas abre-se de repente a porta de ferro da prisão e o próprio velho, o grande inquisidor, entra lentamente com um castiçal na mão. Está só; a porta se fecha imediatamente após sua entrada. Ele se detém por muito tempo à entrada, um ou dois minutos, examina o rosto do Prisioneiro. Por fim se aproxima devagar, põe o castiçal numa mesa e Lhe diz: ‘És tu? Tu?’. Mas, sem receber resposta, acrescenta rapidamente: ‘Não respondas, cala-te.’."
Trecho da nova tradução direta do russo de Os Irmãos Karamázov
"Nas trevas, a porta de ferro da masmorra abre-se de repente e o grande inquisidor aparece, com um facho na mão. Está só, a porta torna a fechar-se atrás dele. Pára no limiar e observa longamente a Santa Face. Por fim, aproxima-se, põe o facho sobre a mesa e diz-lhe: – És tu, és tu? – Não recebendo resposta, acrescenta rapidamente: – Não digas nada, cala-te."
Trecho de uma tradução anterior, feita a partir do francês
Trecho de Os Irmãos Karamázov, de Dostoievski
- Nós temos o nosso prazer histórico, natural e imediato com a tortura do espancamento. Niekrássov tem um poema em que um mujique açoita com um chicote os "dóceis olhos" de um cavalo. Isso é corriqueiro, é o russismo. O poeta descreve como um cavalinho fraco, que recebeu uma carga excessiva, atolou com ela e não consegue arrancá-la do atoleiro. O mujique bate nele, bate com fúria, bate, por fim, sem entender o que faz, na embriaguez de bater açoita-o de forma dolorosa um sem-número de vezes: "Mesmo que estejas sem forças, arrasta, morre, mas arrasta!". O rocim tenta arrancar, e eis que ele começa a açoitar o indefeso, e açoitar seus "dóceis olhos" chorosos. Fora de si, o cavalo dá um arranco, desatola-se e sai todo trêmulo, sem respirar, meio de lado, meio saltitando, de um jeito um tanto antinatural e vergonhoso - no poema de Niekrássov isso é um horror. Todavia se trata apenas de um cavalo, e os cavalos foram dados pelo próprio Deus para serem açoitados. Assim os tártaros nos ensinaram e nos presentearam o chicote como lembrança. Mas se pode açoitar gente também. E eis que um senhor instruído, intelectual, e sua senhora açoitam a própria filhinha, uma criancinha de sete anos, a vara - isso eu tenho anotado em detalhes. O paizinho está contente porque a vara tem farpas e "fica mais pungente", diz ele, e começa a "pungir" a própria filha. Sei ao certo da existência de açoitadores que se exaltam até a volúpia a cada golpe que dão, precisamente até a volúpia, e se exaltam cada vez mais e mais, num crescendo, a cada novo golpe. Açoitam por um minuto, enfim açoitam por cinco minutos, dez, e continuam, com freqüência cada vez maior, e de modo cada vez mais pungente. A criança grita, a criança finalmente não pode gritar, está asfixiada: "Papai, papai, papaizinho, papaizinho!". Por algum acaso diabólico e indecente a questão chega à justiça. Contrata-se advogado. Há muito tempo o povo russo chama advogado de "ablakat - consciência alugada". O advogado se esgoela na defesa de seu cliente. "Uma questão, diz, tão simples, familiar e comum, um pai que açoitou a filha, e eis que para a vergonha de nossos dias o caso chega ao tribunal!" Persuadidos, os jurados se ausentam e proferem a sentença de absolvição. O público dá bramidos de felicidade porque absolveram o carrasco. Sim senhor, se eu estivesse lá teria proposto homenagear o carrasco instituindo uma bolsa de estudos com seu nome!... São cenas fascinantes. Mas eu tenho histórias ainda melhores sobre crianças, reuni muita, muita coisa sobre as crianças russas, Aliócha. O pai e a mãe de uma menininha de cinco anos, pessoas honradíssimas, funcionários públicos, "instruídos e educados", tomaram-se de ódio por ela. Vê, torno a afirmar positivamente que existe uma peculiaridade em muitas criaturas da espécie humana - é o amor à tortura de crianças, e só de crianças. Esses mesmos supliciadores, como europeus instruídos e humanos que são, tratam todos os outros sujeitos da espécie humana até com benevolência e docilidade, mas adoram torturar crianças, até gostam de crianças neste sentido. Neste caso, é precisamente o lado indefeso dessas criaturas que seduz os torturadores, e a credulidade angelical da criança, que não tem onde se meter nem a quem recorrer, é o que inflama o sangue abjeto do torturador. Em todo homem, é claro, esconde-se uma fera, a fera da cólera, a fera da excitabilidade lasciva com os gritos da vítima supliciada, a fera que desconhece freios, desacorrentada, a fera das doenças, da podagra e dos fígados adoecidos na devassidão. Esses pais instruídos sujeitaram a pobre menininha de cinco anos a toda sorte de suplícios. Espancaram, açoitaram, chutaram sem que eles mesmos soubessem por quê, transformaram todo seu corpo em equimoses; por fim, chegaram até ao requinte supremo: trancaram-na uma noite inteira de frio e gelo em uma latrina só porque, durante a noite, ela não pediu para fazer suas necessidades (como se uma criança de cinco anos, em seu pesado sono de anjo, já fosse capaz de pedir para fazer suas necessidades); por isso lhe lambuzaram todo o rosto com suas fezes e a obrigaram a comê-las, a mãe fez isso, a mãe a obrigou! E essa mãe conseguiu dormir, enquanto se ouviam durante a noite os gemidos da pobre criancinha trancada naquele lugar sórdido! Compreendes quando um pequeno ser, que ainda não tem condição sequer de entender o que se faz com ele, trancado naquele lugar sórdido, no escuro e no frio, bate com seus punhozinhos minúsculos no peitinho martirizado e chora suas lágrimas de sangue, complacentes e dóceis, pedindo ao "Deusinho" que o proteja ali - tu entendes esse absurdo, meu amigo e irmão, meu dócil noviço de Deus, entendes para que serve esse absurdo e para que foi criado? Sem ele, dizem, o homem nem conseguiria viver na Terra, pois não teria conhecido o bem e o mal. Para que conhecer esse bem e esse mal dos diabos a um preço tão alto? Sim, porque neste caso o mundo inteiro do conhecimento não valeria essas lágrimas de uma criancinha dirigidas ao seu "Deusinho". Não falo dos sofrimentos dos adultos, estes comeram a maçã e o diabo que os carregue, e carregue a todos, mas elas, as crianças! Estou te fazendo sofrer, Aliócha, pareces desvairado. Se quiseres, eu paro.
- Nada disso, também quero sofrer - murmurou Aliócha.
- Vê mais um quadrinho, um só, e mesmo assim a título de curiosidade; ele é muito peculiar, e o principal é que acabei de ler a respeito em um de nossos manuais de antigüidades, não sei se no Arquivo, no Antigüidade, preciso conferir, esqueci-me até de onde li. Isso aconteceu nos tempos mais sombrios do regime de servidão, ainda no início do século, e viva o libertador do povo! Naquela época, no início do século, havia um general, relacionado a círculos muito importantes, um latifundiário riquíssimo, mas daqueles (é verdade que já pareciam raros mesmo naquela época) que, quando deixavam o serviço e se recolhiam à paz do lar, estavam quase, quase convictos de que haviam merecido o direito sobre a vida e a morte de seus súditos. Naquela época havia gente assim. Pois bem, vive o general em sua fazenda de duas mil almas, cheio de arrogância, tratando por cima dos ombros seus vizinhos, pequenos proprietários, como seus parasitas e palhaços. Tem um canil com centenas de cães e quase uma centena de seus cuidadores todos uniformizados, todos a cavalo. E eis que um menino servo, um garotinho de apenas oito anos, ao brincar, atira uma pedra e fere a pata do galgo predileto do general. "Por que meu cão predileto está mancando?" É informado de que esse menino teria jogado uma pedra no cão, ferindo-lhe a pata. "Ah, então foste tu - o general o mede com o olhar -, peguem-no!" Pegam o menino, tomam-no da mãe, ele passa a noite inteira num calabouço; de manhã, mal o dia amanhece, o general se paramenta todo para a caça, monta em seu cavalo, rodeado de parasitas, cães e seus guardadores, monteiros, todos a cavalo. Ao redor reúnem-se a criadagem para assistir à lição e, à frente de todos, a mãe do menino culpado. Retiram o menino do calabouço. É um nublado, frio e brumoso dia de outono, excelente para a caça. O general manda despir o menino, despem o menininho e o deixam em pêlo, ele treme, está enlouquecido de pavor, não se atreve a dar um pio... "Botem-no para correr!" - comanda o general. "Corre, corre!" - gritam-lhe os cuidadores de cães, o menino corre... "Peguem-no!" - gane o general e lança contra ele toda a matilha de cães velozes. Ele açula os cães à vista da mãe, e os cães estraçalham a criança!... Parece que puseram o general sob tutela. Então... o que fazer com ele? Fuzilar? Fuzilar para a satisfação de um sentimento moral? Diz, Aliócha!
- Fuzilar! - proferiu Aliócha baixinho, levantando os olhos para o irmão com um sorriso contraído.
- Bravo! - ganiu Ivan tomado de certo êxtase. - Já que tu o disseste, então... Ai, seu monge asceta! Vê só que demoniozinho tu tens no coração, Aliócha Karamázov.
Testemunha do crime
O Seqüestro dos Uruguaios — Uma Reportagem dos Tempos da Ditadura conta a história do seqüestro em 1978 dos uruguaios Universindo Díaz e Lílian Celiberti, militantes de esquerda residentes em Porto Alegre. Eles foram presos, torturados e mandados de volta ao país natal, onde cumpririam pena.
Seqüestro oficial...A reportagem que elucidou um crime do regime militar
Em novembro de 1978, os uruguaios Universindo Díaz e Lílian Celiberti, militantes de esquerda residentes em Porto Alegre, foram presos, torturados e mandados de volta ao país natal, onde cumpririam cinco anos de prisão. Não se tratou de um processo de extradição, mas do seqüestro de dois exilados políticos (e também de duas crianças, filhos de Lílian), do qual participaram policiais do Brasil e do Uruguai – uma colaboração espúria no âmbito da Operação Condor, aliança firmada por ditaduras sul-americanas para caçar opositores. Então chefe da sucursal de VEJA em Porto Alegre, o jornalista Luiz Cláudio Cunha tornou-se testemunha do crime. Seguindo uma pista de um anônimo, Cunha e o fotógrafo J.B. Scalco foram bater no apartamento em que Lílian era mantida presa. Seus carcereiros receberam os jornalistas com arma na mão. Passados trinta anos, Cunha reconstitui toda a história, com detalhes que vão do dramático ao pitoresco, em O Seqüestro dos Uruguaios – Uma Reportagem dos Tempos da Ditadura (L± 472 páginas; 49 reais).
O livro mostra os bastidores do esforço de Cunha para trazer a operação clandestina à luz. Com uma arma apontada para a cabeça, Scalco não pôde tirar fotos do cativeiro de Lílian – mas, graças à sua experiência de fotógrafo esportivo, identificou um seqüestrador: Didi Pedalada, ex-jogador do Internacional convertido em escrivão de polícia. Quando VEJA publicou uma reportagem nomeando outro participante do seqüestro, o agente do Dops João Augusto da Rosa, codinome Irno, foi armada uma farsa para desautorizar a revelação: em uma entrevista coletiva, Irno apresentou-se careca e de óculos, muito diferente do sujeito com cabelo e bigode descrito na revista. Coube a outro fotógrafo, Ricardo Chaves, desfazer a farsa: apontando a teleobjetiva para a careca do meganha, descobriu marcas recentes de um corte a navalha, para simular a calvície. O Seqüestro dos Uruguaios é uma demonstração vigorosa do melhor trabalho da imprensa livre: desmontar as trapaças oficiais
Trecho de Seqüestro Dos Uruguaios, de Luiz Cláudio Cunha
TELEFONEMA
Porto Alegre, novembro de 1978
As pernas tremem, bambas.
Não desabo no chão porque estou sentado no banco da frente do Chevette. O cano escuro da pistola a um palmo da minha testa é a imagem que ainda gira solta dentro da minha cabeça. Não tenho idéia melhor.
- Vamos embora, Scalco!
Amolecido como eu, Scalco tenta se desculpar enquanto liga o motor.
- Minha perna está mole. Vou ter que fazer força pra engatar a primeira e sair daqui.
- Toca em frente, cara - insisto. - A minha perna também está travada. Ainda bem que não estou dirigindo, Scalco. Não tenho o hábito de encarar uma pistola assim, tão de perto...
- Nem eu, chefe!
O carro arranca lenta, suavemente, tentando preservar o silêncio da rua cheia de árvores, vazia de gente. A chuva mansa que cai naquela tarde cinzenta de primavera em Porto Alegre deixa o dia ainda mais sonolento. Do outro lado da rua, um Passat creme sem placas continua estacionado com um homem ao volante. Ele nos segue com os olhos. Quatro quadras adiante, antes de dobrar à direita na avenida Praia de Belas, Scalco confere pelo espelho retrovisor antes de responder minha pergunta.
- O Passat continua parado, ninguém nos segue.
A rua Botafogo fica para trás, sonolenta e monótona. Nada parecia perturbar sua tranqüilidade de final de tarde, véspera de fim de semana. Ainda assim a tremedeira não passa.
Chego a pensar em perguntar ao Scalco como é que ele consegue imprimir força suficiente na perna para pressionar o acelerador. Não faço a pergunta, com medo de parecer ainda mais ridículo naquela circunstância.
Diabos, o que estava acontecendo? No curto trajeto de volta para a sucursal, eu procurava organizar o caos dentro de minha cabeça. Tentava cavar respostas, mas só brotavam novas perguntas.
Por que a visita ao apartamento da Botafogo, os dedos nervosos nas armas engatilhadas, o medo nos olhos, os minutos de terror?
Por que a liberdade inesperada, a sensação de alívio, a impressão de culpa e a tentação de fugir?
Fugir de quê? Fugir pra quê?
Eu sabia que teria uma sexta-feira agitada, normalmente agitada, mas nada parecido com aquilo.
Diabos, eu estava com medo, tremia.
Por quê? ***
Aquela sexta-feira, 17 de novembro de 1978, amanheceu com água caindo sobre Porto Alegre e votos jorrando das urnas.
Dois dias antes, o país fazia fila para votar nas eleições que renovaram a Câmara dos Deputados e um terço do Senado. Os jornais da manhã exibiam o sorriso plástico do presidente do partido governista, Francelino Pereira, emoldurando seu anúncio de que "a ARENA está vencendo no país inteiro, em termos gerais".
A matemática oficial, em termos, estava certa. O governo ganhava em 12 dos 22 Estados brasileiros, mas o partido da oposição, o MDB, esmagava a ARENA nos grandes centros urbanos e nas regiões de maior concentração eleitoral. Os números permitiam que um e outro, usando raciocínios diferentes, alardeasse a mesma vitória.
No Rio Grande do Sul, um fiel reduto oposicionista até nos anos mais duros da ditadura militar, a contagem dos votos não admitia dúvidas: a oposição ganhava, mantendo a maioria na Assembléia Legislativa e derrotando os três candidatos arenistas com seu candidato único ao Senado, Pedro Simon, presidente estadual do MDB.
Na sexta-feira, em sua casa no litoral gaúcho, Simon, impedido duas vezes de conquistar o governo estadual por força de cassações de mandatos parlamentares e casuísmos eleitorais, já podia falar sem constrangimentos de sua vitória: naquele momento, 58% dos votos apurados eram dele.
Para dedicar a vitória ao povo pela "capacidade de resistência", o novo senador gaúcho começou a receber a imprensa, vestido ainda de pijama e chambre azul, empunhando seu inseparável cachimbo e amparado na mesa ao lado por um exemplar da obra A justiça no mundo, edição do Vaticano. Dois emissários meus reforçavam o grupo da imprensa na entrevista do senador eleito: o repórter Pedro Maciel e o fotógrafo Ricardo Chaves, da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, que eu chefiava havia seis anos.
Assim, cortado pela metade, o efetivo da sucursal ficava reduzido a mim e a Dedé, a repórter Adélia Porto da Silva. As nossas preocupações previam uma sexta-feira limitada às paredes da simpática casa térrea onde se alojava a sucursal, na Vieira de Castro, uma rua arborizada e tranqüila do bairro Santana. Uma recepcionista ocupava o hall de entrada, que convergia para um corredor que levava às duas primeiras salas, repartidas entre o departamento comercial e a área administrativa.
A partir dali começava o mundo mais trepidante e ruidoso da redação. Um pouco mais adiante, o corredor curto e estreito se abria para dois ambientes. À direita, a minha sala: a mesa sempre forrada de jornais, com o telefone e a parruda Olivetti Línea 88 ao lado, atrás de duas cadeiras e defronte a um armário com a coleção da revista Veja e alguns arquivos de reportagens. À esquerda, do outro lado do corredor, a sala barulhenta do Tota, o Aristóteles Azevedo, o veloz teletipista que passava o dia picotando em fita as matérias que eram enviadas pelo telex à sede da Editora Abril, em São Paulo.
Ao fim do corredor, a sala ampla da redação, onde se alinhavam meia dúzia de mesas dos repórteres e fotógrafos que integravam as revistas da Abril no Sul - Veja, Placar, Exame e Quatro Rodas, entre as principais. Em um cavalete, junto à parede, os principais jornais da cidade e do centro do país. O aparelho de TV estava sempre ligado, sem som, para não abafar o rádio que se alternava entre os noticiosos das duas principais emissoras da capital, a Guaíba e a Gaúcha.
Tudo sob o olhar vigilante e a organização rígida da minha secretária, Loraine, uma loira alta e vistosa que singrava aqueles mares agitados com a serena autoridade da Sétima Frota americana. O janelão dos fundos escancarava o pequeno pátio, de onde vinha o ar fresco do jardim, que renovava os pulmões, e a imagem da churrasqueira, que reforçava a gula.
Nesse mar ruidoso, especialmente em uma sexta-feira de fechamento, Dedé e eu nos dividíamos entre o telefone, o telex, a máquina de escrever, o rádio e o aparelho de TV - que naquele dia, para desespero geral, pareciam rugir simultaneamente.
À medida que a apuração avançava e os números se cruzavam no ar, era preciso transmitir imediatamente o que nos interessava para a redação central da revista, em São Paulo, onde se preparava a reportagem de capa da semana que fechava naquela madrugada.
No final da manhã, Loraine entra na minha sala e faz sinal para interromper a conversa ao telefone. Tapo o bocal com a mão.
- Fala, secreta...
- Tem um homem no telefone querendo falar contigo. Um castelhano. Não disse quem é - avisa.
- Pô, eu estou com a redação de São Paulo na linha. Não posso atender agora - digo, com certa irritação.
Retomo minha conversa com o editor da revista sobre o andamento das eleições. Minutos depois desligo e volto a batucar minha Olivetti velha de guerra. Cesso o tlec-tlec na lauda para atender outra vez o telefone. É a secretária de novo, desta vez ligando pelo ramal da sala logo ali ao lado, certamente para não ver minha cara feia.
- Chefe, ligação de São Paulo pra ti.
- Da revista? - imagino.
- Não. É aquele sujeito de novo, o castelhano.
- Em dia de fechamento, só falo com a revista, Loriley - lembrei, apelando para o apelido carinhoso que podia amenizar minha bronca. Mas ela insistiu:
- O cara parece nervoso...
- Droga! Passa, então... - concedi, com a idéia de me livrar logo daquele incômodo. - Alô!
- Hola! - foi a resposta do outro lado. Minha saudação virou uma pergunta.
- Alô???
- Periodista Luiz Cláudio Cunha?
Lembrei do alerta da secretária. Era o castelhano. O próprio. Entramos em sintonia falando o espanhol.

Thriller político
Em O Fantasma, o ex-repórter e comentarista político, o inglês Robert Harris, 51 anos, trata dos bastidores do poder contemporâneo, que ele conheceu bem como jornalista. O autor também é simpatizante do New Labour, ala que deu novos rumos ao Partido Trabalhista inglês com a eleição de Tony Blair, em 1997.
Pancada disfarçada, mas dura... O vilão do thriller político O Fantasma chama-se Adam Lang – mas é uma caricatura óbvia do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair
Ex-repórter e comentarista político, o inglês Robert Harris, 51 anos, tornou-se um escritor de sucesso com romances históricos sobre o Império Romano (Pompéia) ou a II Guerra Mundial (Enigma). Em O Fantasma (tradução de Fabiano Morais; Record, 322 páginas; 40 reais), recém-lançado no Brasil, Harris preferiu tratar dos bastidores do poder contemporâneo, que ele conheceu bem como jornalista – e como simpatizante do New Labour, ala que deu novos rumos ao Partido Trabalhista inglês com a eleição de Tony Blair, em 1997. O personagem central do livro é um caviloso ex-primeiro-ministro chamado Adam Lang, responsável pelo envolvimento da Inglaterra na invasão do Iraque. Trata-se obviamente de um roman à clef retratando Tony Blair. Harris desiludiu-se com o ex-primeiro-ministro por sua participação na Guerra do Iraque – e também porque, em 2001, Blair demitiu Peter Mandelson, amigo de Harris, do gabinete.
O título faz referência ao personagem que narra a história, um ghost writer (ghost é "fantasma" em inglês) contratado para escrever a autobiografia de Lang. Ele substitui outro ghost writer, Mike McAra, morto por afogamento. O novo escritor nutre suspeitas (fundamentadas, como depois se constata) sobre a morte de McAra. Ultrapassando as funções para as quais foi contratado, ele começa a investigar o passado de Lang. Vai desvendar uma trama que envolve a CIA e companhias privadas com negócios escusos no Iraque – enredo que Harris conduz em ritmo cada vez mais frenético, até o final imprevisível.
A pergunta que se impõe é: se Harris conhece tão bem os bastidores da política britânica, por que escreveu um romance, e não uma obra de jornalismo? As vantagens da ficção são várias: ela dispensa o trabalho de investigação rigoroso – e cria uma blindagem contra processos judiciais. Também permite que Harris se ampare em uma tradição na qual os escritores ingleses são mestres: o thriller político. Harris não alcança os píncaros do gênero – não é um John le Carré ou um Graham Greene –, mas sabe conduzir uma narrativa absorvente. O Fantasma segue a melhor receita do best-seller: intriga política, detalhes picantes e paixões escusas nas ante-salas do poder. E dá umas pauladas críticas disfarçadas (ainda que claras) em um político que começou com brilho, mas caiu em desgraça na opinião pública.
Trecho de O Fantasma, de Robert Harris
De todas as vantagens que a profissão de ghost-writer oferece, uma das maiores é a oportunidade que se tem de conhecer pessoas interessantes. Andrew Crofts, Ghostwriting
Assim que soube como McAra morreu, eu deveria ter dado o fora. Percebo isso agora. Deveria ter dito: "Rick, sinto muito, isso não é pra mim, não me soa bem", terminado meu drinque e ido embora. Mas ele, Rick, era tão bom em contar histórias - sempre pensei que ele deveria ter sido o escritor e eu, o agente literário -, que quando começava a falar, não havia a menor dúvida de que eu iria ouvir. Então, quando ele terminou, eu já estava fisgado.
A história, da forma como Rick me contou durante o almoço naquele dia, era assim:
McAra tinha pegado a última barca de Woods Hole, Massachusetts, para Martha's Vineyard dois domingos antes. Calculei mais tarde que deve ter sido no dia 12 de janeiro. Não se sabia ao certo se a barca iria sair ou não. Desde o meio da tarde que estava ventando muito e as últimas travessias haviam sido canceladas. Porém, por volta das 21 horas, o vento diminuiu um pouco e às 21h45 o capitão decidiu que era seguro zarpar. O barco estava lotado: McAra teve sorte de conseguir uma vaga para o seu carro. Ele estacionou debaixo do convés e então subiu para pegar ar.
Foi a última vez que alguém o viu com vida.
A travessia até a ilha geralmente leva 45 minutos, porém, naquela noite em particular, o clima retardou consideravelmente a viagem: aportar uma embarcação de 60 metros com um vento de 50 nós, disse Rick, não é moleza. Eram quase 11 horas da noite quando a barca atracou no porto de Vineyard e os carros começaram a sair - todos, menos um: um utilitário esportivo Ford Escape cor de canela novinho em folha. O comissário de bordo pediu pelo alto-falante que o dono retornasse ao seu veículo, pois ele estava atravancando os motoristas de trás. Quando mesmo assim ele não apareceu, a tripulação conferiu as portas do carro, que calharam de estar destrancadas, e manobrou o Ford com o motor desligado até o cais. Mais tarde, eles vasculharam o navio com atenção: as escadarias, o bar, os banheiros, até mesmo os botes salva-vidas - nada. Ligaram para o terminal de Woods Hole para confirmar se alguém havia desembarcado antes de o navio sair ou talvez tivesse sido deixado acidentalmente para trás - novamente: nada. Só então um oficial do Departamento de Embarcações a Vapor de Massachusetts finalmente entrou em contato com o posto da Guarda Costeira em Falmouth para comunicar um possível caso de homem ao mar.
A polícia descobriu que a placa do Ford estava registrada em nome de um tal Martin S. Rhinehart, da cidade de Nova York, embora o Sr. Rhinehart tenha sido localizado, algum tempo depois, na sua fazenda na Califórnia. Àquela altura, já era quase meia-noite na Costa Leste e cerca de 21 horas na Oeste.
- Estamos falando do Marty Rhinehart? - interrompi.
- Ele mesmo.
Por telefone, Rhinehart confirmou imediatamente à polícia que o Ford lhe pertencia. Ele o mantinha em sua casa em Martha's Vineyard para uso próprio e de seus convidados no verão. Também confirmou que, apesar da época do ano, um grupo de pessoas estava hospedado lá no momento. Ele disse que pediria à sua assistente para ligar para a casa e descobrir se alguém tinha pegado o carro emprestado. Meia hora depois, ela ligou de volta para dizer que havia, de fato, alguém desaparecido, um homem chamado McAra.
Não havia mais nada a se fazer antes do raiar do dia. Não que isso fosse um problema. Todos sabiam que, se um passageiro tivesse caído no mar, a busca seria por um cadáver. Rick é um desses americanos irritantemente em boa forma de 40 e poucos anos, que parece ter 19 e faz coisas horríveis a seu corpo com bicicletas e canoas. Ele conhece o mar: já passou dois dias contornando os 96 quilômetros da ilha a remo em um caiaque. A barca de Woods Hole atravessa o canal onde o estreito de Vineyard se encontra com o estreito de Nantucket, e aquelas águas são perigosas. Quando a maré está alta, é possível ver a força das correntes sugar as enormes bóias do canal, entortando-as para o lado. Rick balançou a cabeça. Em janeiro, em um vendaval, na neve? Ninguém conseguiria sobreviver mais do que cinco minutos.
Uma moradora encontrou o corpo no início da manhã seguinte, jogado na praia a cerca de seis quilômetros da costa da ilha, em Lambert's Cove. A carta de motorista na sua carteira confirmou que se tratava de Michael James McAra, 50 anos, natural de Balham, ao sul de Londres. Lembro-me de ter sentido um acesso súbito de compaixão ao ouvir o nome daquele bairro lúgubre e nada exótico: ele certamente estava muito longe de casa, o pobre diabo. Seu passaporte trazia o nome da mãe como parente mais próxima. A polícia levou o corpo para o pequeno necrotério no porto de Vineyard e então foi até a casa de Rhinehart para dar a notícia e buscar um dos outros convidados para identificá-lo.
Deve ter sido uma cena e tanto, disse Rick, quando o convidado voluntário finalmente apareceu para ver o corpo: "Aposto que o funcionário do necrotério ainda está falando no assunto." Havia uma patrulha de Edgartown com uma luz azul piscante, um segundo carro com quatro guardas armados para proteger o edifício e um terceiro veículo, à prova de bombas, carregando o homem instantaneamente reconhecível que, até 18 meses atrás, tinha sido o primeiro-ministro da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte.
O almoço tinha sido idéia de Rick. Eu nem sabia que ele estava na cidade até ele me ligar na noite anterior. Insistiu em que nos encontrássemos no seu clube. O clube não era exatamente dele - Rick era, na verdade, membro de um mausoléu semelhante em Manhattan, cujos membros tinham cadeiras cativas mútuas em Londres -, mas ele o amava assim mesmo. Na hora do almoço, somente homens podiam entrar. Todos usavam ternos azul-marinho e tinham mais de 60 anos: não me sentia tão jovem desde que saí da universidade. Lá fora, o céu de inverno pesava sobre Londres como uma enorme lápide cinza. Dentro do clube, a luz elétrica amarela de três candelabros imensos refletia nas escuras mesas envernizadas, nos talheres de prata e nas garrafas avermelhadas de vinho tinto. Um pequeno cartão entre nós anunciava que aquela era a noite do torneio anual de gamão do clube. Era como a Mudança da Guarda ou as Casas do Parlamento - algo que um estrangeiro esperaria da Inglaterra.
- Estou impressionado que isso não tenha saído nos jornais - falei.
- Ah, mas saiu. Ninguém fez segredo. Obituários foram publicados.
E, pensando bem, eu me lembrava vagamente de ter visto alguma coisa. Mas tinha passado um mês trabalhando 15 horas por dia para terminar meu novo livro, a autobiografia de um jogador de futebol, e o mundo além do meu escritório se tornara um borrão.
- O que diabos um ex-primeiro-ministro estava fazendo identificando o corpo de um homem de Balham que caiu da barca para Martha's Vineyard?
- Michael McAra - anunciou Rick, usando o tom enfático de um homem que tinha voado quase 5 mil quilômetros para dizer esta frase - o estava ajudando a escrever suas memórias.
Best-sellers divinos
A Cabana conta a história de um homem que perdeu a filha e discute seus ressentimentos com Deus. E O Vendedor de Sonhos prega uma mensagem na aparência inconformista por meio dos discursos de um personagem identificado apenas como o Mestre.
Best-sellers divinos... Os livros de ficção mais vendidos do Brasil flertam com a autoajuda. Não contentes em contar uma história, buscam consolar e aconselhar o leitor – e oferecem até comunicação direta com Deus.
A lista de mais vendidos de VEJA traz, nesta semana, no topo da categoria ficção, duas obras que trafegam na fronteira da autoajuda. Não é Literatura, com maiúscula não apresentam, por exemplo, a força estilística de um Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, para ficar com outro título que vem freqüentando a lista. Mas esses livros tampouco se contentam em distrair o leitor nas horas vagas, como o típico best-seller. A Cabana (tradução de Alves Calado; Sextante; 240 páginas; 24,90 reais), do canadense William Young, conta a história de um homem que, deprimido e revoltado por causa do assassinato da filha pequena, tem a oportunidade ímpar de discutir seus ressentimentos com ninguém menos que Deus, em tríplice encarnação: Deus pai aparece como uma acolhedora dona-de-casa negra (parece uma mistura do misterioso Oráculo, da série Matrix, com a ama carinhosa de E o Vento Levou...), o Espírito Santo é uma diáfana mulher oriental e Jesus é um jovem carpinteiro que faz piada sobre o próprio narigão judaico. O Vendedor de Sonhos (Academia de Inteligência; 296 páginas; 29,90 reais), do brasileiro Augusto Cury – um campeão da autoajuda, com títulos como Nunca Desista de Seus Sonhos –, prega uma mensagem na aparência inconformista (e no fundo bem mansinha) por meio dos discursos pretensamente poéticos de um personagem identificado apenas como o Mestre. Formalmente, são dois romances. Mas a ficção aqui não está a serviço dela mesma. Ela é um instrumento, um meio de aconselhar, inspirar, consolar o leitor.
O Alquimista e O Diário de um Mago, livros que fizeram o sucesso de Paulo Coelho (que agora se arriscou em um policial, O Vencedor Está Só), também iam nessa direção. Mas há uma diferença marcante: com suas histórias de iniciação em disciplinas mágicas, os romances de Paulo Coelho eram místicos, esotéricos. A Cabana e O Vendedor de Sonhos encaixam-se em uma visão cristã mais tradicional – embora o livro de Young sugira que o relacionamento direto com Deus pode prescindir das igrejas. A temática religiosa não é tão dominante no romance de Cury, mas ele tem lá suas interpretações originais do Evangelho: entre uma e outra crítica ao materialismo da vida moderna (sempre ela), o tal Mestre chega a fazer uma reedição comentada do Sermão da Montanha do alto de uma escadaria de shopping. Esquemáticos e previsíveis, os personagens de A Cabana tendem a se perder em longas discussões sobre o amor de Deus por seus filhos. Nada que exija um leitor versado na teologia de Agostinho e Tomás de Aquino: é um livro acessível. O potencial que ele tem para oferecer consolo é inegável. "Recebo dezenas de e-mails, todo dia, de leitores dizendo que A Cabana os ajudou a lidar com a perda de um pai, de um irmão, de um filho", disse Young a VEJA.
A religião tem inspirado numerosas obras-primas, desde monumentos literários como A Divina Comédia, de Dante, ou Paraíso Perdido, de John Milton. O século passado conheceu um time muito variado de escritores católicos – caso do dramaturgo Paul Claudel e do romancista François Mauriac, pertencentes à geração que despontou no entre guerras, na França, ou de Jorge de Lima e Murilo Mendes, nomes fundamentais da poesia moderna brasileira. A religiosidade desses autores não é bolinho – é muitas vezes atormentada, problemática. Young tem pouco a ver com essa gente. A Cabana guarda parentesco com a literatura ligeira de mais um freqüentador assíduo da lista de best-sellers, Mitch Albom, autor de As Cinco Pessoas que Você Encontra no Céu – outro livro de colorido meio religioso, em que um homem descobre como sua vida foi plena de significado... Depois de morrer. "Não saberia escrever um livro depressivo. Quero levantar as pessoas, alegrá-las", disse Albom a VEJA. O otimismo é a alma do negócio. Também em A Cabana o final é cheio de esperança. Depois de algum trololó divino, Mack, o pai que teve a filha de 6 anos morta por um assassino serial, se convence de que a Criação é perfeita e Deus é bom.
"Resolvi escrever um romance porque a arte e a ficção se comunicam mais diretamente com a alma das pessoas", afirma Young, de 53 anos. Tem razão. Dizer abstratamente que Deus é amor convence menos do que apresentá-lo assando uma torta para um pai desesperado. Young conta que escreveu A Cabana em um período de sua vida em que ele mesmo precisava de consolo – havia perdido um irmão e uma sobrinha de 5 anos. O livro também valeu para acertar certos conflitos da infância. Missionários evangélicos, os pais de Young o arrastaram, ainda menino, para Papua-Nova Guiné, um deslocamento traumático para ele – que sofreria abuso sexual na tribo em que seus pais pregavam. "Em muitos sentidos, Mack sou eu", afirma. Com sua apologia de uma relação direta com Deus, A Cabana vai na linha oposta à religião dos pais do autor. "Minha mãe até achou o livro meio herético", diz Young. A Cabana é o primeiro lugar da lista desta VEJA e na semana passada ocupava o topo da lista de ficção em brochura do New York Times. Young já anda viajando o mundo para promover seu livro – estará no Brasil entre 27 e 30 de outubro. A heresia compensou.
Trecho de A Cabana, de William Young
Uma confluência de caminhos
Duas estradas se bifurcaram no meio da minha vida, Ouvi um sábio dizer. Peguei a estrada menos usada. E isso fez toda a diferença cada noite e cada dia. Larry Norman (pedindo desculpas a Robert Frost)
Março desatou uma torrente de chuvas depois de um inverno de secura anormal. Uma frente fria desceu do Canadá e foi contida por rajadas de vento que rugiam pelo desfiladeiro, vindas do Leste do Oregon. Ainda que a primavera certamente estivesse logo ali, depois da esquina, o deus do inverno não iria abandonar sem luta seu domínio conquistado com dificuldade. Havia um cobertor de neve recente nas Cascades, e agora a chuva congelava ao bater no chão do lado de fora da casa. Motivo suficiente para Mack se enroscar com um livro e uma sidra quente, aconchegando-se no calor do fogo que estalava na lareira.
Mas, em vez disso, ele passou a maior parte da manhã no computador. Sentado confortavelmente no escritório de casa, usando calças de pijama e uma camiseta, ele deu telefonemas de vendas. Parava com freqüência, ouvindo o som da chuva cristalina tilintar na janela e vendo o acúmulo vagaroso mas constante do gelo lá fora. Estava se tornando inexoravelmente prisioneiro do gelo em sua própria casa – e com muito prazer.
Há algo agradável nas tempestades que interrompem a rotina.A neve ou a chuva gélida nos liberam subitamente das expectativas, das exigências de resultados e da tirania dos compromissos e dos horários.Ao contrário da doença, esta é uma experiência mais coletiva do que individual. Quase podemos ouvir um suspiro de alívio erguer-se em uníssono na cidade próxima e no campo, onde a natureza interveio para dar uma folga aos exaustos seres humanos. Todos os afetados pela tempestade são unidos por uma desculpa mútua. De súbito e inesperadamente o coração fica um pouco mais leve. Não serão necessárias desculpas por não comparecer a algum compromisso. Todos entendem e compartilham a mesma justificativa, e a retirada súbita de qualquer pressão alegra a alma.
É claro que as tempestades também interrompem negócios, e, embora umas poucas empresas tenham um ganho extra, outras perdem dinheiro – o que significa que existem os que não sentem júbilo quando tudo fecha temporariamente. Mas é impossível culpar alguém pela perda de produção ou por não conseguir chegar ao escritório. Mesmo que a situação só dure um ou dois dias, de algum modo cada pessoa se sente dona do seu mundo simplesmente porque aquelas gotinhas de água congelam ao bater no chão.
Até as atividades comuns se tornam extraordinárias. Ações rotineiras se transformam em aventuras e freqüentemente são vivenciadas com maior clareza.No fim da tarde, Mack se encheu de agasalhos e saiu para lutar com os quase 100 metros da comprida entrada de veículos que vai até a caixa de correio. O gelo havia convertido magicamente essa tarefa simples do dia-a-dia numa batalha contra os elementos: levantou o punho em contestação à força bruta da natureza e, num ato de desafio, riu na cara dela. O fato de que ninguém notaria nem se incomodaria com seu gesto pouco importava para ele – só o pensamento o fez rir por dentro.
As pelotas de chuva gelada ardiam no rosto e nas mãos enquanto ele subia e descia com cuidado as pequenas ondulações do caminho. Mack se divertia pensando que parecia um marinheiro bêbado indo com cuidado para o próximo boteco. Quando você enfrenta a força de uma tempestade de gelo, não caminha exatamente com ousadia, demonstrando uma confiança incontida. Mack teve de se levantar duas vezes antes de finalmente conseguir abraçar a caixa de correio como se fosse um amigo desaparecido há muito.
Parou para apreciar a beleza de um mundo engolfado em cristal. Tudo refletia luz e colaborava para o brilho crescente do fim de tarde. As árvores no campo do vizinho tinham-se coberto com mantos translúcidos, e agora cada uma parecia única ao seu olhar. Era um mundo radiante e, por um momento, seu esplendor luzidio quase retirou, ainda que por apenas alguns segundos, a Grande Tristeza dos ombros de Mack.
Demorou quase um minuto para arrancar o gelo que havia lacrado a tampa da caixa de correio. A recompensa por seus esforços foi um único envelope onde havia apenas seu primeiro nome escrito à máquina do lado de fora; sem selo, sem carimbo e sem remetente. Curioso, ele rasgou a borda do envelope, tarefa que não foi fácil, pois os dedos começavam a se enrijecer de frio. Dando as costas para o vento que lhe tirava o fôlego, finalmente conseguiu arrancar do ninho um pequeno retângulo de papel sem dobra. A mensagem datilografada dizia simplesmente:
Mackenzie
Já faz um tempo. Senti sua falta. Estarei na cabana no fim de semana que vem, se você quiser me encontrar.
Papai
Mack se enrijeceu enquanto uma onda de náusea percorria seu corpo e, com igual rapidez, se transmutava em ira. Esforçava-se para pensar o mínimo possível na cabana e, mesmo quando ela lhe vinha à mente, seus pensamentos não eram agradáveis nem bons. Se aquilo era uma piada de mau gosto, a pessoa realmente havia se superado. E assinar "Papai" só tornava a coisa ainda mais horrenda.
– Idiota – resmungou, pensando em Tony, o carteiro: um italiano exageradamente amigável, com grande coração mas pouco tato. Por que ele entregaria um envelope tão ridículo? Nem estava selado. Mack enfiou com raiva o envelope e o bilhete no bolso do casaco e virou-se para começar a deslizar na direção de casa. Os sopros fortes do vento, que a princípio haviam diminuído de intensidade, agora o empurravam, encurtando o tempo necessário para atravessar a minigeleira que engrossava sob seus pés.
Estava se saindo bem, obrigado, até chegar à entrada de veículos, que se inclinava um pouco para baixo e à esquerda. Sem qualquer esforço ou intenção, começou a aumentar a velocidade, deslizando com sapatos que tinham praticamente tanta firmeza quanto um pato pousando num lago gelado. Com os braços balançando loucamente na esperança de, não sabia como, manter o equilíbrio, Mack se viu adernando de encontro à única árvore de tamanho substancial que ladeava a entrada de veículos – a única cujos galhos mais baixos ele havia cortado uns poucos meses antes. Agora ela se erguia ansiosa para abraçá-lo, seminua e aparentemente desejosa de uma pequena retribuição. Numa fração de segundo, ele escolheu o caminho da covardia e tentou despencar no chão, permitindo que os pés escorregassem – o que eles de qualquer modo fariam. Melhor ter a bunda dolorida do que arrancar lascas do rosto.
Mas a descarga de adrenalina o fez compensar exageradamente, e em câmara lenta Mack viu os pés se erguerem à sua frente, como se puxados para cima por alguma armadilha da selva. Bateu com força, primeiro com a nuca, e escorregou até um monte na base da árvore brilhosa, que pareceu se erguer acima dele com uma expressão de presunção e nojo, além de uma certa decepção.
O mundo pareceu ficar escuro por um instante. Ele permaneceu ali deitado, tonto e olhando o céu, franzindo os olhos enquanto a precipitação gelada esfriava rapidamente seu rosto vermelho. Durante uma pausa ligeira, tudo pareceu estranhamente quente e pacífico, com sua cólera momentaneamente nocauteada pelo impacto.
– Agora, quem é o idiota? – murmurou consigo mesmo, esperando que ninguém estivesse olhando.
Trecho de O Vendedor de Sonhos, de Augusto Cury
O encontro
No mais inspirador dos dias, sexta-feira, cinco da tarde, pessoas apressadas — como de costume — paravam e se aglomeravam num entroncamento central da grande metrópole. Olhavam para o alto, aflitas, no cruzamento da Rua América com a Avenida Europa. O som estridente de um carro de bombeiros invadia os cérebros, anunciando perigo. Uma ambulância procurava furar o trânsito engarrafado para se aproximar do local.
Os bombeiros chegaram com rapidez e isolaram a área, impedindo os espectadores de se aproximar do imponente Edifício San Pablo, pertencente ao grupo Alfa, um dos maiores conglomerados empresariais do mundo. Os cidadãos se entreolhavam, e os transeuntes que chegavam pouco a pouco traziam no semblante uma interrogação. O que estaria acontecendo? Que movimento era aquele? As pessoas apontavam para o alto. No vigésimo andar, num parapeito do belo edifício de vidro espelhado, debruçava-se um suicida.
Mais um ser humano queria abreviar a já brevíssima existência. Mais uma pessoa planejava desistir de viver. Era um tempo saturado de tristeza. Morriam mais pessoas interrompendo a própria vida do que nas guerras e nos homicídios. Os números deixavam atônitos os que refletiam sobre eles. A experiência do prazer havia se tornado larga como um oceano, mas tão rasa quanto um espelho d’água. Muitos privilegiados financeira e intelectualmente viviam vazios, entediados, ilhados em seu mundo. O sistema social assolava não apenas os miseráveis, mas também os abastados.
O suicida do San Pablo era um homem de quarenta anos, face bem torneada, sobrancelhas fortes, pele de poucas rugas, cabelos grisalhos semilongos e bem-tratados. Sua erudição, esculpida por muitos anos de instrução, agora se resumia a pó. Das cinco línguas que falava, nenhuma lhe fora útil para falar consigo mesmo; nenhuma lhe dera condições de compreender o idioma de seus fantasmas interiores. Fora asfixiado por uma crise depressiva. Vivia sem sentido. Nada o encantava.
Naquele momento, apenas o último instante parecia atraí-lo. Esse fenômeno monstruoso que costumam chamar de morte parecia tão aterrador... Mas era, também, uma solução mágica para aliviar os transtornos humanos. Nada parecia demover aquele homem da idéia de acabar com a própria vida. Ele olhou para cima, como se quisesse se redimir do seu último ato, olhou para baixo e deu dois passos apressados, sem se importar em despencar. A multidão sussurrou de pavor, pensando que ele saltaria.
Alguns observadores mordiam os dedos em grande tensão. Outros nem piscavam os olhos, para não perder detalhes da cena — o ser humano detesta a dor, mas tem uma fortíssima atração por ela; rejeita os acidentes, as mazelas e misérias, mas eles seduzem sua retina. O desfecho daquele ato traria angústia e insônia aos espectadores, mas eles resistiam a abandonar a cena de terror. Em contraste com a platéia ansiosa, os motoristas parados no trânsito estavam impacientes, buzinavam sem parar. Alguns colocavam a cabeça janela afora e vociferavam: "Pula logo e acaba com esse show!".
Os bombeiros e o chefe de polícia subiram até o topo do edifício para tentar dissuadir o suicida. Não tiveram êxito. Diante do fracasso, um renomado psiquiatra foi chamado às pressas para realizar a empreitada. O médico tentou conquistar a confiança do homem, estimulou-o a pensar nas conseqüências daquele ato... Mas nada. O suicida estava farto de técnicas, já havia feito quatro tratamentos psiquiátricos malsucedidos. Aos berros, ameaçava: "Mais um passo e eu pulo!". Tinha uma única certeza, "a morte o silenciaria", pelo menos acreditava que sim. Sua decisão estava tomada, com ou sem platéia. Sua mente se fixava em suas frustrações, remoia suas mazelas, alimentava a fervura da sua angústia.
Enquanto se desenrolavam esses acontecimentos no alto do edifício, apareceu sorrateiramente um homem no meio da multidão, pedindo passagem. Aparentemente era mais um caminhante, só que malvestido. Trajava uma camisa azul de mangas compridas desbotada, com algumas manchas pretas. E um blazer preto amassado. Não usava gravata. A calça preta também estava amassada, parecia que não via água há uma semana. Cabelos grisalhos ao redor da orelha, um pouco compridos e despenteados. Barba relativamente longa, sem cortar a algum tempo. Pele seca e com rugas sobressaltadas no contorno dos olhos e nos vincos do rosto, evidenciando que às vezes dormia ao relento. Tinha entre trinta e quarenta anos, mas aparentava mais idade. Não expressava ser uma autoridade política nem espiritual, e muito menos intelectual. Sua figura estava mais próxima de um desprivilegiado social do que de um ícone do sistema.
Sua aparência sem magnetismo contrastava com os movimentos delicados dos seus gestos. Tocava suavemente os ombros das pessoas, abria um sorriso e passava por elas. As pessoas não sabiam descrever a sensação que tinham ao ser tocadas por ele, mas eram estimuladas a abrir-lhe espaço.
O caminhante aproximou-se do cordão de isolamento dos bombeiros. Foi impedido de entrar. Mas, desrespeitando o bloqueio, fitou os olhos dos que o barravam e expressou categoricamente:
— Eu preciso entrar. Ele está me esperando. — Os bombeiros o olharam de cima a baixo e menearam a cabeça. Parecia mais alguém que precisava de assistência do que uma pessoa útil numa situação tão tensa.
— Qual o seu nome? — indagaram sem pestanejar.
— Não importa neste momento! — respondeu firmemente o misterioso homem.
— Quem o chamou? — questionaram os bombeiros.
— Você saberá! E se demorarem me interrogando, terão de preparar mais um funeral — disse, elevando os olhos.
Os bombeiros começaram a suar. Um tinha síndrome do pânico, outro era insone. A última frase do misterioso homem os perturbou. Ousadamente ele passou por eles. Afinal de contas, pensaram, "talvez seja um psiquiatra excêntrico ou um parente do suicida".
Chegando ao topo do edifício, foi barrado novamente. O chefe de polícia foi grosseiro.
— Parado aí. Você não devia estar aqui. — Disse que ele deveria descer imediatamente. Mas o enigmático homem fitou lhe os olhos e retrucou:
— Como não posso entrar, se fui chamado?
O chefe de polícia olhou para o psiquiatra, que olhou para o chefe dos bombeiros. Faziam sinais um para o outro para saber quem o chamara. Bastaram alguns segundos de distração para que o misterioso malvestido saísse da zona de segurança e se aproximasse perigosamente do homem que estava próximo de seu último fôlego.
Quando o viram, não dava mais tempo para interrompê-lo. Qualquer advertência que fizessem contra ele poderia desencadear o acidente, levando o suicida a executar sua intenção. Tensos, preferiram aguardar o desenrolar dos fatos.
O homem chegou sem pedir licença e sem se perturbar com a possibilidade de o suicida se atirar do edifício. Pegou-o de surpresa, ficando a três metros dele. Ao perceber o invasor, o outro gritou imediatamente:
— Vá embora, senão vou me matar!
O forasteiro ficou indiferente a essa ameaça. Com a maior naturalidade do mundo, sentou-se no parapeito do edifício, tirou um sanduíche do bolso do paletó e começou a comê-lo prazerosamente. Entre uma mordida e outra, assoviava uma música, feliz da vida.
O suicida ficou abalado. Sentiu-se desprestigiado, afrontado, desrespeitado em seus sentimentos.
Aos berros, clamou:
— Pare com essa música. Eu vou me jogar.
Intrépido, o estranho homem reagiu:
— Você quer fazer o favor de não perturbar meu jantar?! – disse com veemência. E deu mais umas boas mordidas, mexendo as pernas com prazer. Em seguida, olhou para o suicida e fez um gesto, oferecendo-lhe um pedaço.
Ao ver esse gesto, o chefe de polícia tremulou os lábios, o psiquiatra estatelou os olhos e o chefe dos bombeiros franziu a testa, perplexo.
O suicida ficou sem reação. Pensou consigo: "Não é possível! Achei alguém mais maluco do que eu".
Memórias russas
O russo Gary Shteyngart emigrou para os EUA aos 7 anos e ao transformar-se em escritor optou por entrelaçar às raízes russas aquilo que absorvera da cultura americana. Em Absurdistão, ele conta a história do judeu russo Misha, radicado nos EUA, que depois de visitar o país natal não consegue mais o visto de saída.
Viagem ao Absurdistão...Russo radicado nos Estados Unidos, Gary Shteyngart combina a tradição satírica russa e o humor pop americano para compor um retrato de seu país natal depois do fim do comunismo
Nascido em 1972, na cidade que os soviéticos chamavam de Leningrado, mas que retomou o nome de São Petersburgo depois do fim do comunismo, Gary Shteyngart emigrou para os Estados Unidos aos 7 anos. Ao transformar-se em escritor, optou por entrelaçar às raízes russas aquilo que absorvera da cultura americana, e com isso vem compondo uma obra curiosa – e muito engraçada. A literatura russa sempre manteve uma veia satírica, que começou com Nikolai Gogol (1809-1852). O período soviético enterrou o potencial devastador do humor russo, cuja marca central é um agudo olhar realista transformado pelo sentimento do absurdo das forças do estado e da burocracia. Shteyngart se apoderou dessa herança. Combinou-a, contudo, com a estética do cartum, com um humor mais ligeiro e de tiradas certeiras – ainda que às vezes adolescentes. O resultado está no romance Absurdistão (tradução de Daniel Frazão e Maira Parula; Rocco; 336 páginas; 45 reais), agora lançado no Brasil.
Absurdistão conta a história do judeu russo Misha Borisovitch Vainberg, que tem 30 anos, 145 quilos e 35 milhões de dólares em sua conta bancária – esses últimos resultantes de um acordo que fez com os sócios, que, incidentalmente, também são os assassinos de seu pai. Este era um típico novo-rico dos que proliferaram no rastro da derrocada soviética. Dono de uma revenda de carros que vendia tudo, exceto carros, mandou o filho para Nova York, para que fosse circuncidado e cursasse uma universidade. Ao visitar o pai e presenciar seu assassinato, Misha não consegue mais o visto para retornar aos Estados Unidos. O romance inteiro é a sua tentativa tragicômica de sair daquele universo repulsivo de russos bêbados e deslumbrados pela civilização tecnológica. A idéia que surge é viajar ao Absurdistão, um enclave com petróleo perdido às margens do Mar Cáspio, onde ele compra um passaporte belga. Mas a eclosão de uma guerra entre os sevos e os svanïs, duas facções cristãs que se tornam inimigas em nome de coisa nenhuma, deixa-o preso num inferno de bombas e ruínas. Nesse retrato desvairado do mundo pós-soviético, Shteyngart realiza plenamente o que sempre foi à alma da sátira: por meio das situações e imagens mais absurdas, dar ao leitor uma visão nítida da realidade.
Rússia, ame-a ou deixe-a
"Tive o pressentimento de que levaria muito tempo para voltar à Nova York. Isso costuma acontecer com os russos. A União Soviética acabou e as fronteiras estão abertas. Mesmo assim, quando um russo se desloca entre os dois universos, continua a sensação de imutabilidade, a impossibilidade lógica de um lugar como a Rússia existir às margens do mundo civilizado. (...) Não é de espantar que os jovens falem em ‘atravessar o cordão’ quando se referem a emigrar, como se a Rússia fosse cercada por um vasto cordão sanitário. Ou você fica na colônia de leprosos ou sai para o grande mundo e talvez espalhe suas doenças para os outros."

Trecho de Absurdistão, de Gary Shteyngar
De onde estou falando
Este é um livro sobre o amor. Dedico as próximas 336 páginas com aquela melosa afetividade russa que passa por amor verdadeiro ao meu Amado Papai, à cidade de Nova York, à minha doce e pobre namorada do South Bronx e ao Serviço de Imigração e Naturalização dos Estados Unidos.
Este também é um livro sobre o amor demais. Um livro sobre o que é ser passado para trás. Digo logo de uma vez: eu fui passado para trás. Eles me usaram. Eles se aproveitaram de mim. Eles me exploraram. Eles souberam na mesma hora que tinham encontrado o homem certo. Se é que "homem" é a palavra certa.
Talvez todo esse negócio de ser passado para trás seja genético. Estou pensando aqui em minha avó. Stalinista apaixonada, fiel colaboradora do Pravda de Leningrado até o Alzheimer levar o que restava de sua sanidade, ela escreveu a célebre alegoria de Stalin, a Águia da Montanha, dando um vôo rasante no vale para pegar três texugos imperialistas, representados pelo Reino Unido, a América e a França, cujos corpos pequeninos são feitos em pedaços pelas garras ensangüentadas do Generalíssimo. Em uma de minhas fotos de criança eu engatinho para o colo da vovó. E me aconchego nela. Ela se aconchega em mim. É o ano de 1972 e nós dois parecemos absolutamente insanos. Bem, olhe para mim agora, vovó. Olhe para o dente que me falta e o buraco em meu estômago. Olhe o que fizeram com o meu coração, esse quilo machucado de gordura pendurado em meu peito. Se o assunto é ser feito em pedaços no século 21, eu sou o quarto texugo.
Estou escrevendo isso em Davidovo, um pequeno vilarejo inteiramente povoado pelos chamados judeus montanheses nas proximidades da fronteira do norte da antiga república soviética do Absur- dsvanï. Ah, os judeus montanheses. Em seu isolamento nas montanhas e com sua devoção tacanha ao clã e a Jeová eles me parecem pré-históricos, até mesmo pré-mamíferos, como um dinossauro sagaz em miniatura que uma vez arrastou-se pela Terra, o Haimosaurus Rex.
É início de setembro. O céu é de um azul estático e, por alguma razão, sua limpidez e infinitude me fazem lembrar de que estamos neste pequeno planeta redondo a caminho de um terrível vazio. As antenas parabólicas do vilarejo, assentadas nas cúpulas dos amplos presbitérios de tijolos vermelhos, apontam para as montanhas circundantes e seus picos coroados pelo branco alpino. A brisa suave do fim de verão acalenta minhas feridas e até o cão vadio que perambula ocasionalmente pelas ruas parece saciado e pacífico, como se fosse emigrar para a Suíça amanhã.
Os habitantes do vilarejo aglomeram-se em torno de mim, os idosos ressequidos, os adolescentes sebentos, os marginais do pedaço com suas tatuagens de prisões soviéticas nos dedos (velhos amigos do meu Amado Papai) e até o confuso rabino octogenário e caolho que agora chora no meu ombro, murmurando em seu russo rudimentar a honra de ter um judeu importante como eu no seu vilarejo, de como ele gostaria de me dar panquecas de espinafre e cordeiro frito e de achar uma boa esposa da região para montar em mim e bombear a minha barriga como uma bola de praia que precisa de ar.
Eu sou um judeu secular que não encontra conforto no nacionalismo nem na religião. Mas não me furto ao prazer de estar em meio a essa estranha extensão de minha raça. Os judeus montanheses me protegem e me acolhem, sua hospitalidade é irresistível, seu espinafre é suculento e absorve o alho e a manteiga batida e fresca.
E ainda assim quero alçar vôo.
Cruzar o mundo.
Aterrissar na esquina da 173 com a Vyse, onde ela está à minha espera.
O Dr. Levine, meu psicanalista da Park Avenue, quase me tirou a idéia de que posso voar. "Vamos manter nossos pés no chão", ele gosta de dizer. "Vamos nos ater ao que de fato é possível." Sábias palavras, doutor, mas talvez você não esteja me ouvindo de verdade.
Não acho que posso voar como um gracioso pássaro ou um rico super-herói americano. Acho que posso voar do mesmo jeito que faço o resto das coisas - aos arrancos, com a gravidade a todo instante tentando me arrastar para a fina faixa negra do horizonte, com as pedras pontiagudas arranhando meu peito e o estômago, com os rios enchendo minha boca de água lamacenta e os desertos entupindo meus bolsos de areia, e a cada árdua subida poder me ver caindo de repente até o nada. Estou fazendo isso agora, doutor. Estou voando para longe do velho rabino que se agarra com frenesi à gola do meu casaco, por sobre a vegetação do vilarejo e os cordeiros pré-assados, por cima da saliência esverdeada de duas cadeias de montanhas em colisão que mantêm os pré-históricos judeus montanheses a salvo dos angustiados muçulmanos e cristãos dos arredores, por cima da nivelada Chechênia e da esburacada Sarajevo, sobre as represas hidroelétricas e o vazio mundo espiritual, sobre a Europa, essa maravilhosa polis na montanha com uma cintilante bandeira azul no alto das muralhas de sua fortaleza, sobre a calmaria letal e congelada do Atlântico, que acima de tudo gostaria de me afogar de uma vez por todas, voando sempre cada vez mais alto e finalmente para perto e mais perto da margem da pequena ilha...
Estou voando para o norte, na direção da mulher dos meus sonhos. Mantenho-me próximo ao chão, como você recomenda, doutor. Tento distinguir formas e lugares que já conheço. Tento recompor minha vida. E agora consigo avistar aquele lugar paquistanês na Church Street onde limpei a cozinha inteira, afogando-me em gengibre e mangas ácidas, lentilhas temperadas e couve-flor, enquanto os motoristas de táxi me incitavam e comentavam da minha gula com os seus parentes em Lahore. Agora estou em cima da pequena linha de prédios que seguem até o leste do Madison Park, a réplica do campanário da São Marcos de Veneza com extensão de um quilômetro, o teto dourado do New York Life Building, essas sinfonias de pedra, esses arranjos modernistas que os americanos devem ter gravado em rochas do tamanho de luas, essas últimas tentativas de uma imortalidade sem Deus. Agora estou em cima da clínica na 24, onde uma vez um assistente social disse que o meu teste de HIV dera negativo, fazendo-me ir até o banheiro para chorar de culpa pelos belos garotos magricelas cujos olhares assustados eu evitara na sala de espera.
Agora sobrevôo a folhagem densa do Central Park, avistando as sombras projetadas pelas jovens matronas que passeiam com seus cachorrinhos orientais rumo à redenção comunitária do Great Lawn. O escuro rio Harlem passa voando por mim; contorno o teto prateado do lento e ruidoso trem do IRT e sigo para o norte, com o meu corpo cansado e fraco a implorar por um pouso. Agora estou sobre o South Bronx, não tenho mais certeza se estou voando ou caindo no asfalto com uma velocidade olímpica. O mundo da minha namorada se aproxima e me envolve. Estou ciente das verdades inexoráveis da Tremont Avenue - onde, segundo um gracioso registro de grafite, BEBO sempre AMA LARA, onde a fachada de néon do Brave Fried Chicken implora para que eu experimente o seu aroma gorduroso e suculento, onde o salão Adonai Beauty ameaça pegar os meus cabelos ondulados e penteá-los para cima, ateando fogo neles como a tocha alaranjada da Liberdade.
Passo como um gordo raio de luz pelas lojas baratas que vendem camisetas dos anos 1980 e moletons Rocawear falsificados, pela massa marrom dos conjuntos habitacionais que alertam ZONA DE OPERAÇÃO e QUEM ULTRAPASSAR ESTÁ SUJEITO À PRISÃO, por sobre a cabeça de garotos de gangue com bandanas e redes de cabelo que competem entre si com suas monstruosas motocicletas, por sobre meninas dominicanas de três anos de idade com vestidos e brincos de diamantes falsos, por sobre o quintal arrumado onde a lacrimosa Virgem afaga para sempre o rosário em torno do seu pescoço ruborizado.
Na esquina da 173 com a Vyse Avenue, na varanda de um conjunto habitacional entupida de pufes espalhados e balas de alcaçuz vermelhas, minha garota cobriu seu colo nu com apostilas da Hunter College. Abro caminho direto, sem desvios, até a generosidade dos seus seios caramelados pelo verão, ambos cobertos por uma plaquinha amarela que informa com letras maiúsculas que G É DE GANGSTA. E quando a cubro de beijos, quando o suor do meu vôo transatlântico faz com que ela se encharque da minha própria marca de sal e melado, sinto-me estúpido pelo meu amor por ela e pelo meu pesar por quase todo o resto. Pesar pelo meu Amado Papai, o verdadeiro "gangsta" de minha vida. Pesar pela Rússia, minha longínqua terra natal, e pelo Absurdistão, onde o calendário nunca passará da segunda semana de setembro de 2001.



Vampiro sangue-bom
Dois novos livros tratam de uma das figuras mais fantásticas de provado fascínio e sedução, o vampiro. Lua Nova fala de um morto-vivo ético, que não bebe sangue humano – e foge das investidas da namorada. E O Vampiro antes de Drácula – antologia de contos – é um bom roteiro para as origens dessa criatura
Vampiro de dentes de leite...Mais herói do que monstro, o protagonista da série criada por Stephenie Meyer é um morto-vivo ético, que não bebe sangue humano – e foge das investidas da namorada
O adolescente Edward Cullen deveria ser o pesadelo de todo pai vigilante. É capaz de subir pela janela de sua namorada, Bella, no 2º andar, em um só salto silencioso. E sabe escapar com a mesma rapidez furtiva tão logo sua audição acurada detecte o menor movimento do pai pela casa. No entanto, ele é na verdade o sonho do pai careta: mesmo com acesso irrestrito à cama da namorada, nunca vai além de beijos e amassos acanhados. Edward tem boas razões para ser tão casto: ele é um vampiro. Faz parte de um clã que já não é predador de humanos e vive de animais caçados nas florestas do estado de Washington. Edward teme que a proximidade de Bella acabe provocando sua sede de sangue. Esse drama fantástico-romântico anima uma série de quatro livros que já vendeu cerca de 13 milhões de exemplares nos Estados Unidos e transformou sua autora, a americana Stephenie Meyer, até então uma pacata dona-de-casa mórmon, em uma celebridade comparada (ainda que não exatamente comparável) a J.K. Rowling, criadora de Harry Potter. O primeiro livro da série, Crepúsculo – cuja adaptação cinematográfica estréia em novembro nos Estados Unidos –, freqüenta a lista de best-sellers de VEJA e já vendeu 80000 exemplares no Brasil. O segundo romance, Lua Nova (tradução de Ryta Vinagre; Intrínseca; 480 páginas; 39,90 reais), está chegando agora às livrarias do país.
Os números de Stephenie Meyer, embora impressionantes, não fazem cócegas nos recordes de J.K. Rowling – só em suas primeiras 24 horas no mercado americano, Harry Potter e as Relíquias da Morte vendeu 8 milhões de exemplares, mais da metade de toda a série Crepúsculo. Mas a comparação faz sentido quando se considera o tipo de público que Stephenie e Rowling atraem: não são apenas jovens leitores, mas seguidores, o tipo do fã de carteirinha que faz fila em livraria e discute o enredo de cada livro em fóruns na internet. As duas autoras atualizam, com graça, figuras ancestrais da mitologia. J.K. Rowling é mais extravagante, misturando bruxos e centauros, trolls e basiliscos. Stephenie Meyer centrou-se em uma figura fantástica de provado fascínio e sedução, o vampiro (embora Lua Nova também traga Jacob, um jovem lobisomem irremediavelmente apaixonado por Bella).
Um bom roteiro para as origens dessa criatura foi lançado há pouco: O Vampiro antes de Drácula (Aleph; 336 páginas; 46 reais), antologia de contos de vampiro anteriores ao Drácula de Bram Stoker – considerado o clássico definitivo do gênero – organizado e traduzido por Martha Angel e Humberto Moura Neto, biólogos profissionais e devotados "vampirólogos". Na informativa introdução do livro, os autores notam que monstros sugadores de sangue existiram em todas as mitologias. O vampiro mais ou menos como se conhece hoje, porém, surgiu lá pelo fim do século XVII, quando lendas de mortos que saíam da cova para matar os vivos e beber sangue começaram a pipocar em grotões supersticiosos do antigo Império Austro-Húngaro (a palavra "vampiro" vem provavelmente do sérvio). Nessas primeiras versões da Europa Centro-Oriental, o vampiro era um campônio morto-vivo, grosseiro e fedendo a cova. Foi se refinando ao longo do tempo, até chegar ao aristocrático Drácula de Bram Stoker, conde de origem húngara (como Bela Lugosi, seu mais conhecido intérprete no cinema).
Stephenie Meyer manteve o caráter sedutor do vampiro, mas retirou sua essência demoníaca. Alguns deles ainda são assassinos inveterados – mas não precisam ser assim. "Meus livros são sobre escolhas. Você não precisa ser mau apenas porque é um vampiro", diz Stephenie. Em Lua Nova, o vampiro (e médico!) Carlisle, pai adotivo de Edward, fala até de sua crença em Deus. O próprio Edward tem sérias angústias metafísicas: duvida que vampiros tenham alma. É por isso que hesita em morder o belo pescoço de Bella – embora ela deseje ardentemente se converter em vampira. A história é narrada em primeira pessoa por Bella, com todos os tiques convulsivos de uma heroína romântica: ela enrubesce, chora copiosamente, desmaia, sofre miseravelmente quando Edward foge para não mais colocar a vida dela em risco. O encanto dos livros também está nesse exagero. Discretamente, Stephenie Meyer até se permite uma ou outra nota erótica: "O que é mais tentador para você: meu sangue ou meu corpo?", pergunta Bella ao namorado morto-vivo. Eis aí uma mórmon de imaginação endiabrada.
Filhos das trevas...Algumas versões do mito do vampiro – e o morcego que existe de verdade
NOS CLÁSSICOS LITERÁRIOS
O SOBRENATURAL – Em Drácula (1897), do irlandês Bram Stoker, o mais célebre dos romances do gênero, os vampiros são imortais que bebem sangue, mas temem a luz do sol
A MORAL – Drácula é sedutor, mas vil
NA CULTURA POP
O SOBRENATURAL – As características básicas dos vampiros de Bram Stoker foram conservadas nos best-sellers da americana Anne Rice e na série de televisão Buffy, a Caça-Vampiros – apenas com mais ênfase na superforça dessas criaturas
A MORAL – Continuam malvados, mas com eventuais crises de consciência. Alguns têm até alma, como Angel, namorado de Buffy
NA SÉRIE CREPÚSCULO
O SOBRENATURAL – Nos livros de Stephenie Meyer, os vampiros têm força sobre-humana e escutam pensamentos. Brilham a luz do sol – mas não morremA MORAL – Como os humanos, podem decidir se seguirão o caminho do bem ou do mal. O vampiro adolescente Edward, por exemplo, é bonzinho – e lindo
NA NATUREZA
O SOBRENATURAL – Nativos das zonas tropicais, os morcegos hematófagos voam orientados pelo som, com uma espécie de radar natural. Mas não há nada de místico nissoA MORAL – Quando volta para a toca depois de uma caçada bem-sucedida, o morcego regurgita o excedente de sangue para alimentar os companheiros. Nojento, mas altruísta
"Eu não gosto de sangueira"
DONA-DE-CASA MÓRMON Stephenie Meyer garante que seus livros não tratam de abstinência sexual: "A verdadeira tentação é o conhecimento"
Em entrevista por e-mail, a americana Stephenie Meyer, 35 anos, autora da série best-seller Crepúsculo, diz que não gosta de histórias sangrentas e explica que seus vampiros são super-heróis, e não criaturas do mal.
Você já comentou em várias entrevistas que não é fã de histórias de terror. Por que decidiu escrever sobre vampiros? Não escolhi os vampiros. Eles me escolheram. Escrevi sobre eles porque tive um sonho em que apareciam um vampiro e uma garota apaixonada por ele, e não tenho idéia da razão de eu ter tido esse sonho. Os vampiros que criei têm mais a ver com super-heróis do que com monstros. Sempre adorei super-heróis.
Por que há tanta surpresa com o fato de uma mãe de família mórmon escrever uma história de vampiros? Creio que a surpresa vem de uma visão estreita e preconceituosa da minha religião. Também acho que, quando as pessoas ouvem falar em "história de vampiros", pensam que o livro é um romance de terror. Mas não sou uma pessoa sombria e não gosto de sangueira.
A fé entra de alguma maneira na sua ficção? Sim, no sentido de fazer com que meus personagens tenham muita sensibilidade para temas espirituais. Isso facilita o relacionamento do leitor com eles. As pessoas reais sempre se perguntam o que virá depois da morte e como isso deve afetar o modo como elas vivem. Meus personagens se perguntam sobre isso também.
Grande parte da tensão dos livros está no esforço do vampiro Edward para não morder sua namorada, Bella. Seria uma metáfora para a abstinência sexual? Não, isso seria muito limitado. Não escolhi a imagem da maçã na capa do primeiro livro, ou a epígrafe do Gênesis sobre o fruto proibido, para representar a experiência sexual. Eu queria que a imagem trouxesse à mente a expressão "o fruto do conhecimento do bem e do mal", também do Gênesis. A verdadeira tentação está em querer saber, ainda que o conhecimento possa ser perigoso. Meus dois protagonistas cedem a essa tentação e cruzam fronteiras perigosas um com o outro.
Muitos filmes recentes, como meninas Malvadas, apresentam a escola secundária americana como um lugar de pressões insuportáveis para os adolescentes, e isso também transparece em seus livros. A escola é mesmo tão terrível? Não, não todo o tempo. Mas é um período crucial, que nos dá as melhores lembranças e as piores cicatrizes. É uma encruzilhada fascinante: você já tem idade para tomar decisões que afetarão o resto da sua vida, mas quase nunca permitem que tome essas decisões sozinho, sem a supervisão de um adulto. Há muito potencial para um romance nessa situação.
Trecho Crepúsculo, de Stephanie Meyer
Foi ali, sentada no refeitório, tentando conversar com sete estranhos curiosos, que eu os vi pela primeira vez.
Estavam sentados no canto do refeitório, à maior distância possível de onde eu me encontrava no salão comprido. Eram cinco. Não estavam conversando e não comiam, embora cada um deles tivesse uma bandeja cheia e intocada diante de si. Não me encaravam, ao contrário da maioria dos outros alunos, por isso era seguro observá-los sem temer encontrar um par de olhos excessivamente interessados. Mas não foi nada disso que atraiu e prendeu minha atenção.
Eles não eram nada parecidos. Dos três meninos, um era grandalhão — musculoso como um halterofilista inveterado, com cabelo escuro e crespo. Outro era mais alto, mais magro, mas ainda assim musculoso, e tinha cabelo louro cor de mel. O último era esguio, menos forte, com um cabelo desalinhado cor de bronze. Era mais juvenil do que os outros, que pareciam poder estar na faculdade ou até ser professores daqui, em vez de alunos.
As meninas eram o contrário. A alta era escultural. Linda, do tipo que se via na capa da edição de trajes de banho da Sports Illustrated, do tipo que fazia toda garota perto dela sentir um golpe na autoestima só por estar no mesmo ambiente. O cabelo era dourado, caindo delicadamente em ondas até o meio das costas. A menina baixa parecia uma fada, extremamente magra, com feições miúdas. O cabelo era de um preto intenso, curto, picotado e desfiado para todas as direções.
E, no entanto, todos eram de alguma forma parecidos. Cada um deles era pálido como giz, os alunos mais brancos que viviam nesta cidade sem sol. Mais brancos do que eu, a albina. Todos tinham olhos muito escuros, apesar da variação de cor dos cabelos. Também tinham olheiras — arroxeadas, em tons de hematoma. Como se tivessem passado uma noite insone, ou estivessem se recuperando de um nariz quebrado. Mas os narizes, todos os seus traços, eram retos, perfeitos, angulosos.
Mas não era por nada disso que eu não conseguia desgrudar os olhos deles.
Fiquei olhando porque seus rostos, tão diferentes, tão parecidos, eram completa, arrasadora e inumanamente lindos. Eram rostos que não se esperava ver a não ser talvez nas páginas reluzentes de uma revista de moda. Ou pintados por um antigo mestre como a face de um anjo. Era difícil decidir quem era o mais bonito — talvez a loura perfeita, ou o garoto de cabelo cor de bronze.
Todos pareciam distantes — distantes de cada um ali, distantes dos outros alunos, distantes de qualquer coisa em particular, pelo que eu podia notar. Enquanto eu observava, a garota baixinha se levantou com a bandeja — o refrigerante fechado, a maçã sem uma dentada — e se afastou com passos longos, rápidos e graciosos apropriados para uma pista de decolagem. Fiquei olhando, surpresa com seus passos de dança, até que ela largou a bandeja no lixo e seguiu para a porta dos fundos, mais rápido do que eu teria pensado ser possível. Meus olhos dispararam de volta aos outros, que ficaram sentados, impassíveis.
— Quem são eles? — perguntei à garota da minha turma de espanhol, cujo nome eu esquecera.
Enquanto ela olhava para ver do que eu estava falando — embora já soubesse, provavelmente, pelo meu tom de voz —, de repente ele olhou para ela, o mais magro, o rapaz juvenil, o mais novo, talvez. Ele olhou para minha vizinha só por uma fração de segundo, e depois seus olhos escuros fulguraram para mim.
Ele desviou os olhos rapidamente, mais rápido do que eu, embora, em um jorro de constrangimento, eu tenha baixado o olhar de imediato. Naquele breve olhar, seu rosto não transmitiu nenhum interesse — era como se ela tivesse chamado o nome dele, e ele a olhasse numa reação involuntária, já tendo decidido não responder.
Minha vizinha riu sem graça, olhando a mesa como eu.
— São Edward e Emmett Cullen, e Rosalie e Jasper Hale. A que saiu é Alice Cullen. Todos moram com o Dr. Cullen e a esposa. — Ela disse isso à meia-voz.
Olhei de lado para o rapaz bonito, que agora fitava a própria bandeja, desfazendo um pãozinho em pedaços com os dedos pálidos e longos. Sua boca se movia muito rapidamente, os lábios perfeitos mal se abrindo. Os outros três ainda pareciam distantes e, no entanto, eu sentia que ele estava falando em voz baixa com eles.
Nomes estranhos e incomuns, pensei. O tipo de nome que têm os avós. Mas talvez seja moda por aqui — nomes de cidades pequenas? Finalmente me lembrei de que minha vizinha se chamava Jessica, um nome perfeitamente comum. Havia duas meninas que se chamavam Jessica na minha turma de história, na minha cidade.
— Eles são... Muito bonitos. — Lutei com a patente atenuação da verdade.
— É — concordou Jessica com outra risada. — Mas todos estão juntos... Emmett e Rosalie, e Jasper e Alice, quero dizer. E eles moram juntos. — Sua voz trazia toda a condenação e o choque da cidade pequena, pensei criticamente. Mas, para ser sincera, tenho que admitir que até em Phoenix isso provocaria fofocas.
— Quem são os Cullen? — perguntei. — Eles não parecem parentes...
— Ah, e não são. O Dr. Cullen é bem novo, tem uns vinte e tantos ou trinta e poucos anos. Todos foram adotados. Os Hale são mesmo irmãos, gêmeos... Os louros... E são filhos adotivos.
— Parecem meio velhos para filhos adotivos.
— Agora são, Jasper e Rosalie têm 18 anos, mas estão com a Sra. Cullen desde que tinham 8 anos. Ela é tia deles ou coisa assim.
— Isso é bem legal... Eles cuidarem de todas essas crianças, quando eram tão pequenos e tudo isso.
— Acho que sim — admitiu Jessica com relutância, e tive a impressão de que por algum motivo ela não gostava do médico e da esposa. Com os olhares que ela atirava aos filhos adotivos, eu imaginava que o motivo era inveja. — Mas acho que a Sra. Cullen não pode ter filhos — acrescentou ela, como se isso diminuísse sua bondade.
Em toda essa conversa, meus olhos disparavam sem parar para a mesa onde se acomodava a estranha família. Eles continuavam a olhar para as paredes e não comiam.
— Eles sempre moraram em Forks? — perguntei. Certamente eu os teria percebido em um dos verões aqui.
— Não — disse ela numa voz que dava a entender que isso devia ser óbvio, até para uma recém-chegada como eu. — Só se mudaram há dois anos, vindos de algum lugar do Alasca.
Senti uma onda de pena, e também alívio. Pena porque, apesar de lindos, eles eram de fora, e claramente não eram aceitos. Alívio por eu não ser a única recém-chegada por aqui, e certamente não ser a mais interessante, por qualquer padrão.
Enquanto eu os examinava, o mais novo, um dos Cullen, virou-se e encontrou meu olhar, desta vez com uma expressão de evidente curiosidade. Quando desviei os olhos rapidamente, me pareceu que o olhar dele trazia uma espécie de expectativa frustrada.
— Quem é o garoto de cabelo ruivo? — perguntei. Eu o espiei pelo canto do olho e ele ainda estava me encarando, mas não aparvalhado como os outros alunos. Tinha uma expressão meio frustrada. Olhei para baixo novamente.
— É o Edward. Ele é lindo, é claro, mas não perca seu tempo. Ele não namora. Ao que parece, nenhuma das meninas daqui é bonita o bastante para ele. — Ela fungou, um caso claro de dor-de-cotovelo. Eu me perguntei quando é que ele a tinha rejeitado.
Mordi o lábio para esconder meu sorriso. Depois olhei para ele de novo. Seu rosto estava virado para o outro lado, mas achei que sua bochecha parecia erguida, como se ele também estivesse sorrindo.
Depois de mais alguns minutos, os quatro saíram da mesa juntos. Todos eram muito elegantes — até o grandalhão de cabelo castanho. Era perturbador de ver. O garoto chamado Edward não olhou novamente para mim.
Trecho de Lua Nova, de Stephenie Meyer
FESTA
EU TINHA NOVENTA E NOVE POR CENTO DE CERTEZA DE que estava sonhando.
Os motivos para minha certeza eram que, primeiro, eu estava de pé em um raio brilhante de sol - o sol claro e ofuscante que nunca luzia em minha nova cidade chuvosa, Forks, no estado de Washington - e, segundo, eu olhava minha avó Marie. Vovó morrera havia seis anos, então era uma prova concreta da teoria do sonho.
Minha avó não mudara muito; seu rosto estava exatamente igual ao que eu lembrava. A pele era macia e murcha, dobrando-se em centenas de pequenas rugas que pendiam delicadas. Como um damasco seco, mas com uma nuvem de cabelo branco e espesso se destacando em volta dele.
Nossas bocas - a dela com rugas ressecadas - se estendiam no mesmo meio sorriso de surpresa, exatamente ao mesmo tempo. Aparentemente, ela também não esperava me ver.
Eu estava prestes a lhe fazer uma pergunta; tinha tantas - O que ela estava fazendo ali, no meu sonho? O que ela andara fazendo nos últimos seis anos? Vovô estava bem, e eles se encontraram, onde quer que estivessem? -, mas ela abriu a boca quando tentei falar, então parei para permitir que ela falasse primeiro. Ela fez uma pausa também e depois nós duas sorrimos com o pequeno embaraço.
"Bella?"
Não era vovó que chamava meu nome, e nós duas nos viramos para ver quem se unira a nossa reuniãozinha. Não precisava olhar para saber quem era; aquela era uma voz que eu reconheceria em qualquer lugar - reconheceria e reagiria a ela, quer estivesse acordada ou dormindo... Ou até morta, posso apostar. A voz pela qual eu pisaria em brasas - ou, sendo menos dramática, pela qual eu chapinharia na lama em cada dia de chuva fria e interminável.
Edward.
Embora eu sempre ficasse emocionada ao vê-lo - consciente ou não -, e embora eu quase tivesse certeza de que era um sonho, entrei em pânico enquanto Edward se dirigia a nós sob o sol reluzente.
Entrei em pânico porque vovó não sabia que eu estava apaixonada por um vampiro - ninguém sabia disso -, então, como eu explicaria o fato de que os feixes brilhantes de sol se dividiam em sua pele em mil fragmentos de arco-íris, como se ele fosse feito de cristal ou diamante?
Bom, vó, deve ter percebido que meu namorado brilha. É só uma coisa que ele faz no sol. Não se preocupe com isso...
O que ele estava fazendo? O motivo para ele morar em Forks, o lugar mais chuvoso do mundo, era que podia ficar ao ar livre durante o dia sem revelar o segredo de sua família. E no entanto ali estava ele, andando elegantemente em minha direção - com o sorriso mais lindo em seu rosto de anjo, como se eu fosse a única presente.
Nesse segundo, desejei não ser a única exceção a seu misterioso talento; em geral eu me sentia grata por ser a única pessoa cujos pensamentos ele não podia ouvir com clareza, como se fossem pronunciados em voz alta. Mas agora eu queria que ele fosse capaz de me ouvir também, assim poderia escutar o alerta que eu gritava em minha cabeça.
Lancei um olhar de pânico para minha avó e vi que era tarde demais. Ela estava se virando para olhar para mim de novo, os olhos tão alarmados quanto os meus.
Edward - ainda sorrindo daquele jeito tão lindo que fazia meu coração parecer inchar e explodir no peito - pôs o braço em meu ombro e virou-se para olhar minha avó.
A expressão de vovó me surpreendeu. Em vez de parecer apavorada, ela me olhava timidamente, como se esperasse por uma repreensão. E ela estava de pé numa posição tão estranha - um braço afastado canhestramente do corpo, esticado e, depois, envolvendo o ar. Como se estivesse abraçando alguém que eu não podia ver, alguém invisível...
Só então, enquanto eu olhava o quadro como um todo, foi que percebi a enorme moldura dourada que cercava as feições de minha avó. Sem compreender, levantei a mão que não estava na cintura de Edward e a estendi para tocá-la. Ela imitou o movimento com exatidão, espelhando-o. Mas onde nossos dedos deveriam se encontrar não havia nada, a não ser o vidro frio...
Com um sobressalto vertiginoso, meu sonho tornou-se abruptamente um pesadelo.
Não havia vovó alguma.
Aquela era eu. Eu em um espelho. Eu - anciã, enrugada e murcha. Edward estava a meu lado, sem reflexo, lindo de morrer e com 17 anos para sempre.
Ele apertou os lábios perfeitos e gelados em meu rosto desgastado.
- Feliz aniversário - sussurrou.
Acordei assustada - minhas pálpebras se arregalando - e arfante. A luz cinzenta e embaçada, a familiar luz de uma manhã nublada, tomou o lugar do sol ofuscante de meu sonho.
Um sonho, disse a mim mesma. Foi só um sonho. Respirei fundo e pulei novamente quando meu despertador tocou. O pequeno calendário no canto do mostrador do relógio me informou que era dia 13 de setembro.
Um sonho, mas pelo menos, de certo modo, bastante profético. Era o dia do meu aniversário. Eu tinha oficialmente 18 anos.
Durante meses, tive pavor desse dia.
Por todo o verão perfeito - o verão mais feliz que tive na vida, o verão mais feliz que qualquer um em qualquer lugar teria e o verão mais chuvoso da história da península de Olympic - essa triste data ficou de tocaia, esperando para saltar sobre mim.
E, agora que chegara, era ainda pior do que eu temia. Eu podia sentir - eu estava mais velha. A cada dia eu ficava mais velha, mas isto era diferente, era pior, quantificável. Eu tinha 18 anos.
E Edward jamais teria essa idade.
Quando fui escovar os dentes, quase me surpreendi com o fato de que o rosto no espelho não mudara. Olhei para mim mesma, procurando por algum sinal de rugas iminentes em minha pele de marfim. Mas os únicos vincos eram os da minha testa, e eu sabia que, se conseguisse relaxar, eles desapareceriam.
Não consegui. Minhas sobrancelhas se alojaram em uma linha de preocupação acima de meus angustiados olhos castanhos.
Foi só um sonho, lembrei a mim mesma de novo. Só um sonho... Mas também meu pior pesadelo.
Não tomei o café-da-manhã, com pressa para sair de casa o mais rápido possível. Não fui inteiramente capaz de evitar meu pai e tive de passar alguns minutos fingindo-me animada. Tentei ficar empolgada de verdade com os presentes que eu pedira para ele não comprar para mim, mas sempre que eu tinha de sorrir, parecia que podia começar a chorar.
Lutei para me controlar enquanto dirigia para a escola. A visão de minha avó - eu não pensava nela como eu mesma - não saía de minha cabeça. Só o que consegui sentir foi desespero, até que parei no estacionamento conhecido atrás da Forks High School e vi Edward curvado e imóvel sobre seu Volvo prata polido, como um monumento de mármore em homenagem a algum esquecido deus pagão da beleza. O sonho não lhe fizera justiça. E ele esperava ali por mim, exatamente como nos outros dias.
O desespero desapareceu por um momento, substituído pela admiração. Mesmo depois de meio ano com ele, eu ainda não acreditava que merecia tanta sorte.
Sua irmã, Alice, estava a seu lado, também esperando por mim.
É claro que Edward e Alice não eram de fato parentes (em Forks, corria a história de que todos os irmãos Cullen tinham sido adotados pelo Dr. Carlisle Cullen e sua esposa, Esme, os dois indiscutivelmente novos demais para ter filhos adolescentes), mas sua pele tinha exatamente a mesma palidez, os olhos tinham o mesmo tom dourado, com as mesmas olheiras fundas, como hematomas. O rosto de Alice, como o dele, era de uma beleza incrível. Para alguém que sabia - alguém como eu -, essas semelhanças representavam a marca do que eles eram.
A visão de Alice esperando ali - seus olhos caramelo brilhantes de empolgação e um pequeno embrulho prateado nas mãos - deixou-me carrancuda. Eu disse a Alice que não queria nada, nada mesmo, nenhum presente, nem mesmo alguma atenção pelo aniversário. Obviamente, meus desejos estavam sendo ignorados.
Bati a porta de minha picape Chevy 53 - uma chuva de ferrugem caiu do teto molhado - e andei devagar na direção deles. Alice pulou à frente para me receber, a cara de fada reluzente sob o cabelo preto e desfiado.
- Feliz aniversário, Bella!
- Shhh! - sibilei, olhando o estacionamento para me certifi car de que ninguém a ouvira. A última coisa que eu queria era uma espécie de comemoração do melancólico evento.
Ela me ignorou.
- Quer abrir seu presente agora ou depois? - perguntou ansiosamente enquanto seguíamos para onde Edward ainda esperava.
- Nada de presentes - protestei num murmúrio.
Ela por fim pareceu entender meu estado de espírito.
- Tudo bem... Mais tarde, então. Gostou do álbum que sua mãe mandou para você? E a câmera de Charlie?
Suspirei. É claro que ela saberia quais eram meus presentes de aniversário. Edward não era o único membro da família com habilidades in comuns. Alice teria "visto" o que meus pais planejavam assim que eles tomaram a decisão.
- É. São ótimos.
- Eu acho que é uma ótima idéia. Só se chega ao último ano da escola uma vez. Pode muito bem documentar a experiência.
- Quantas vezes você fez o último ano? - Isso é diferente
Trecho de O Vampiro antes de Drácula, de Martha Angel e Humberto Moura Neto
O retrato oval
Edgar Allan Poe
O castelo, onde meu criado se atrevera a forçar entrada para não permitir que eu, em minha desesperada condição de ferido, passasse a noite a céu aberto, era uma daquelas edificações em que o desalento e a grandeza se amalgamavam e que, em meio aos Apeninos, contemplavam carrancudos a passagem do tempo, não menos na realidade do que na imaginação de Mrs. Radcliffe. Tudo fazia crer que seu abandono era temporário e bastante recente. Instalamo-nos num dos aposentos menores e de mobília menos suntuosa, situado numa torre isolada. Apesar de requintadas, as decorações eram gastas e antiquadas. As paredes estavam revestidas com tapeçarias e adornadas com inúmeros e multiformes brasões, e com um bom número de inspiradas pinturas modernas, em molduras de belos arabescos dourados. Por estas pinturas, que pendiam não só das paredes principais, mas nos vários recantos que a bizarra arquitetura do castelo tornava necessários, por estas pinturas senti grande interesse, talvez devido a um princípio de delírio. Assim, pedi a Pedro que fechasse as pesadas venezianas do quarto - uma vez que a noite já caíra -, que acendesse o candelabro alto junto a minha cabeceira, e escancarasse as cortinas de veludo negro e franjado do dossel que envolvia a cama. Com tais providências eu esperava que, se não conseguisse dormir, ao menos pudesse contentar me em olhar as pinturas, alternando a contemplação com o manuseio de um pequeno livro que encontrara sobre o travesseiro, e cujo propósito era comentá-las e descrevê-las.
Li por um longo, longo tempo, e com grande devoção contemplei os quadros. As horas voaram ligeiras, gloriosas, até que a negra meia-noite chegou. A posição do candelabro me desagradava. Estendendo a mão com dificuldade, e tentando não perturbar o criado que dormia, ajeitei-o de forma que a luz incidisse em cheio sobre o livro.
A ação teve, porém, um efeito inesperado. Os raios das inúmeras velas (pois havia muitas) agora recaíam sobre um nicho do quarto que até então estivera encoberto pela sombra de um dos balaústres da cama. Eu assim notei, sob a luz vívida, uma pintura que antes me passara despercebida. Era o retrato de uma mulher jovem. Passei os olhos rapidamente pela pintura e então cerrei-os. A princípio, a razão de assim proceder não ficou aparente nem mesmo à minha própria percepção. Mas, enquanto minhas pálpebras permaneceram fechadas, procurei na mente as razões para ter agido desta forma. Fora um movimento impulsivo, uma tentativa de ganhar tempo para a reflexão - para assegurar-me de que a visão não me enganara -, de acalmar e dominar minha imaginação e permitir-me um olhar mais sóbrio, mais preciso. Um instante depois, voltei a contemplar a pintura com atenção.
De que, agora, eu podia vê-la de maneira correta não havia mais dúvida, pois o primeiro lampejo das velas sobre o quadro pareceu dissipar o estupor sonolento que se havia apoderado de meus sentidos, e lançou-me sem aviso de volta à vigília.
O retrato, como já disse, era de uma mulher jovem. Ele mostrava apenas a cabeça e os ombros, representados na forma que recebe o nome técnico de vinheta, num estilo que lembrava as obras de Sully. Os braços, o colo e até as pontas de seus cabelos radiantes se fundiam de modo imperceptível com as sombras indistintas, mas profundas, que compunham o fundo do quadro. A moldura oval exibia uma ornamentação elaborada, filigranada no estilo mourisco. Como objeto de arte, nada seria mais admirável que a pintura em si. Mas não poderia ter sido a execução da obra, ou a beleza imortal do rosto, o que me tocara de modo tão inesperado e veemente. Menos ainda poderia ser que minha imaginação, despertada de seu torpor, houvesse confundido o retrato com uma pessoa viva. No ato, dei-me conta de que as particularidades da composição, da representação e da moldura haviam dissipado de imediato tal idéia, e teriam impossibilitado considerá-la mesmo que por um instante. Refletindo com atenção sobre esses pontos, permaneci por talvez uma hora, meio sentado, meio reclinado, o olhar fixo no retrato. Ao final, satisfeito com o real segredo de seu efeito, recostei-me na cama. Eu encontrara o feitiço da pintura numa absoluta verossimilhança de expressão, a qual de início surpreendeu-me para então desconcertar-me, dominar-me e, por fim, deixar-me estarrecido. Com um medo profundo e respeitoso, reconduzi o candelabro a sua posição anterior. Agora que a causa de minha profunda agitação estava fora de vista, apanhei ansioso o livro que comentava as pinturas e sua história. Buscando o número que designava o retrato oval, li estas palavras vagas e surpreendentes:
“Era uma donzela de rara beleza, tão encantadora como cheia de alegria”. E amaldiçoada foi à hora em que viu, e amou, e desposou o pintor. Ele, passional, estudioso, austero, tendo já na Arte sua prometida. Ela, uma donzela de rara beleza, tão encantadora como cheia de alegria; toda luz e sorrisos, travessa como uma corça; amando e apreciando todas as coisas; abominando tão-somente sua rival, a Arte; temendo apenas a paleta e os pincéis e outros instrumentos malfadados que a privavam do semblante de seu amado. Assim, foi terrível para a donzela ouvir o pintor expressando o desejo de retratar até mesmo a jovem noiva. Era, porém, humilde e obediente, e por muitas semanas sentou-se, dócil, na câmera escura da torre, onde apenas a luz vinda do alto incidia sobre a tela pálida. Mas, ele, o pintor, regozijava-se com seu trabalho, que prosseguia hora após hora, dia após dia. E era um homem apaixonado, e intempestivo, e calado, que se perdeu em delírios, a ponto de não se permitir perceber que a luz tão lúgubre daquela torre antiga drenava a saúde e o espírito de sua noiva, que definhava aos olhos de todos, exceto aos seus. E, no entanto, ela sorria e continuava a sorrir, sem protestos, por saber que o pintor (que tinha grande renome) extraía dessa tarefa um prazer fervoroso e ardente, e trabalhava dia e noite para retratar aquela que tanto o amava, e que, porém, a cada dia mostrava-se mais frágil e abatida. Em verdade, houve quem visse o retrato e aos murmúrios comentasse a semelhança, como um prodígio, uma prova tanto do poder do pintor quanto de seu profundo amor por aquela que retratava de forma tão extraordinária. Entretanto, quando o trabalho estava quase concluído, ninguém mais era admitido na torre, pois o pintor fora arrebatado pelo ardor de seu trabalho, e apenas raramente erguia os olhos da tela, mesmo que para fitar a face da esposa. E ele se recusava a ver que os matizes que aplicava na tela eram extraídos da mulher que tinha a seu lado. Quando várias semanas haviam passado, e pouco restava a fazer, salvo uma pincelada sobre a boca e um toque sobre o olho, o espírito da dama outra vez tremeluziu como a chama da lamparina. E a pincelada foi aplicada e o toque colocado; e, por um momento, o pintor permaneceu em transe diante da obra que criara. Mas, no instante seguinte, enquanto ainda a admirava, ficou trêmulo e empalideceu. Assombrado, e exclamando em alta voz, "Isto é de fato a própria Vida!", virou-se para olhar sua amada. “Ela estava morta.”
Fácil de ler
O escritor galês Ken Follett, conhecido por seus thrillers, histórias da II Guerra e livros de espionagem, volta a se arriscar em uma saga medieval. Mundo sem Fim traz elementos que fazem um bom vira-página: muita ação, intrigas palacianas e personagens fortes que lutam para superar uma sorte adversa.
Quem manda é o leitor...Veterano do best-seller, Ken Follett retorna, em seu mais recente romance, ao universo medieval do sucesso Os Pilares da Terra. Mundo sem Fim persegue o objetivo único do autor: agradar aos fãs
Ken Follett gosta de catedrais. Não é, no entanto, um homem religioso. "Eu me interesso pelas catedrais como fenômenos sociais. São monumentos de uma beleza arrebatadora, mas foram construídos por gente que morava em casebres de madeira", disse Follett em entrevista a VEJA. Foi esse contraste dramático que motivou o escritor galês, conhecido por seus thrillers, histórias da II Guerra e livros de espionagem (O Buraco da Agulha, seu primeiro grande sucesso, era tudo isso ao mesmo tempo), a se arriscar em uma saga medieval. Os Pilares da Terra, de 1989, tornou-se um de seus livros mais populares. Ainda hoje vende em torno de 100 000 exemplares por ano nos Estados Unidos (em 2007, voltou ao topo das listas de mais vendidos do país, depois que a poderosa apresentadora Oprah Winfrey o escolheu para seu clube de leitura). Mundo sem Fim (tradução de Pinheiro de Lemos; Rocco; 942 páginas; 75 reais), agora lançado no Brasil, é uma espécie de continuação de Os Pilares da Terra. Por que Follett voltou à Idade Média? "Os leitores pediam", diz. Tal é a razão de ser de um autor de best-sellers: agradar aos leitores.
Mundo sem Fim traz elementos que fazem um bom vira-página: muita ação, intrigas palacianas, personagens fortes que lutam para superar uma sorte adversa. A história começa com quatro crianças que testemunham um crime em uma floresta (aliás, um dos meninos toma parte ativa nas mortes). Como sói acontecer em sagas do gênero, o destino dos quatro será indissociável ao longo das 900 páginas seguintes. O leitor não precisa ter passado pelos dois alentados tomos de Os Pilares da Terra para se divertir com Mundo sem Fim. A locação é a mesma – Kingsbridge, localidade fictícia na Inglaterra medieval –, mas a história se passa no século XIV, 200 anos depois do primeiro livro, obviamente com outros personagens.
FORÇAS SOCIAIS...O Triunfo da Morte, de Bruegel: a peste mudou as relações de trabalho
O site de Follett na internet traz uma interessante seção chamada "masterclass" (algo como "aula magna"), em que ele dá dicas para a composição de um best-seller. A palavra-chave é planejamento: o autor de O Vôo da Vespa pesquisa extensamente sobre o tema de suas obras e traça a estrutura do livro antes de escrever a primeira linha. Nada disso, porém, garante sucesso. "Ainda não apareceu ninguém que tenha chegado à lista de mais vendidos seguindo as minhas dicas. Não existe fórmula para um best-seller", diz Follett. Curiosamente, a crítica mais comum que se faz a autores como Follett, Frederick Forsyth ou Tom Clancy centra-se no caráter de fórmula de seus livros. A narrativa do best-seller de fato se ampara em alguns simplismos, como se constata pela psicologia muito básica dos protagonistas de Mundo sem Fim (a mulher forte mas oprimida pela sociedade machista de seu tempo, por exemplo, é um persistente chavão feminista). Mas há autores que usam esses clichês com competência, enquanto outros fracassam. Follett está entre os primeiros. É um mestre do entretenimento.
Vendendo na casa dos milhões desde O Buraco da Agulha, de 1978, Follett poderia se aposentar, mas já está trabalhando em outra ambiciosa saga, A Trilogia do Século, que cobrirá o período de 1914 a 1989 – o primeiro volume deve sair em 2010. "Poderia passar meus dias jogando golfe, mas morreria de tédio. Escrever me entusiasma, e eu sou bom nisso", diz o imodesto Follett. Eis um homem que aprecia o sucesso e a riqueza sem nenhum traço de má consciência. Casado com Barbara, política do Partido Trabalhista inglês e atualmente ministra do gabinete de Gordon Brown, Follett alinha-se de boa vontade ao que no Brasil se chamaria de "esquerda festiva" (é um "socialista do champanhe", na expressão inglesa). Foi próximo do ex-primeiro-ministro Tony Blair, com quem acabou rompendo. Há quem diga que um monge caviloso de Mundo sem Fim foi inspirado em Blair. O autor não nega as semelhanças, mas tem uma avaliação generosa do ex-primeiro-ministro. "Sua grande fraqueza foi não ter dito a verdade sobre o Iraque. Mas, no geral, o legado de seu governo é positivo", diz.
Um socialista do champanhe
O escritor galês Ken Follett fala de seus livros, da Idade Média e da política contemporânea
Seus livros são muito variados – há sagas medievais, thrillers de espionagem, histórias da II Guerra. Qual seria a marca de um romance de Ken Follett? Eu diria que o traço mais característico dos meus romances é que eles puxam o leitor de uma página para outra. É nisso que eu me concentro. Se você está lendo um livro meu em um avião, ficará desapontado se ele aterrissar antes de você chegar ao final.
Como começou seu interesse pela Idade Média? Tudo começou com as catedrais, que me fascinam. Foi a partir daí que me interessei pelas pessoas que as construíram e sobre como elas viviam. Para escrever Os Pilares da Terra e Mundo sem Fim, tive de aprender sobre o cotidiano na Idade Média. Os leitores apreciam esse retrato do dia-a-dia medieval. É óbvio que o que prende o leitor é a história. Mas ele também gosta de aprender algo.
Como um escritor ateu consegue mergulhar na mentalidade religiosa da Idade Média? Recorri a lembranças de infância. Eu me lembro de como as pessoas falavam de Deus, do pecado, do inferno. Meus pais eram cristãos devotos – talvez por isso eu hoje seja ateu. E tenho familiaridade com a Bíblia, que li do início ao fim.
O senhor já fez campanha pelo Partido Trabalhista e é casado com uma ministra do gabinete de Gordon Brown. Essa atividade política tem alguma influência nos seus livros? Imagino que um leitor perceptivo poderia adivinhar a minha orientação política nos meus livros. Mas não é meu tema central. Escrevo sobre a sociedade, com um viés político, mas jamais de política partidária. O meu interesse recai sobre o modo como as forças sociais afetam os indivíduos. Em Mundo sem Fim, por exemplo, retrato o momento em que faltou mão-de-obra na Inglaterra, por causa da peste negra, e, pela primeira vez na história britânica, os trabalhadores puderam barganhar com os empregadores o valor de seu trabalho.
Antes de O Buraco da Agulha, o senhor escreveu pelo menos dez livros – alguns assinados com pseudônimo – que não fizeram sucesso. Qual era a falha desses romances? Meus primeiros livros têm uma série de erros. Eu os escrevi com muita pressa e sem nenhum planejamento ou pesquisa. Eles têm um andamento acelerado demais. Há muita ação e pouca emoção, e é a emoção que atrai o leitor.
O senhor se define como um "socialista do champanhe". O que vem a ser isso? Alguns comentaristas de direita acreditam que você não pode ser de esquerda se for rico. E acham que chamar os ricos de esquerda de "socialistas do champanhe" é uma crítica aguda. Eu aceitei a expressão de bom grado. Acredito que você pode, sim, ser de esquerda e gostar de champanhe. O que não podemos é deixar todo o champanhe para os conservadores. Seria um crime.


Trecho de Mundo Sem Fim, de Ken Follett
Gwenda estava com oito anos, mas não tinha medo do escuro.
Quando abriu os olhos não pôde ver nada, mas não foi isso que a assustou. Sabia onde se encontrava. Estava no priorado de Kingsbridge, no prédio de pedra comprido que chamavam de hospital - um lugar para tratar de doentes, mas que também servia como um albergue para os pobres e os ricos - deitada no chão, numa cama de palha. A mãe deitava ao seu lado, e Gwenda compreendeu, pelo cheiro de leite quente, que amamentava o bebê que acabara de nascer, ainda sem nome. Do outro lado da mãe estava o pai e, junto de Gwenda, o irmão mais velho, Philemon, que tinha doze anos.
Havia muita gente no hospital. Embora não pudesse ver as outras famílias deitadas no chão, espremidas como ovelhas num cercado, Gwenda podia sentir o cheiro desagradável dos corpos quentes. Quando o dia amanhecesse, seria Todos os Santos, um domingo naquele ano, e por isso mesmo um dia muito especial. A noite anterior fora um momento perigoso, quando os espíritos do mal vagueavam livres por toda parte. Centenas de pessoas haviam ido para Kingsbridge, das aldeias ao redor, como a família de Gwenda, a fim de passar o Dia de Todos os Santos no recinto sagrado do priorado, comparecendo à missa ao amanhecer.
Gwenda era cautelosa com os espíritos do mal, como todas as pessoas sensatas; mas sentia-se mais assustada com o que teria de fazer durante o serviço religioso.
Ela ficou olhando para o escuro, tentando não pensar no que a deixava apavorada. Sabia que havia uma janela em arco na parede à sua frente. Não tinha vidro - só os prédios mais importantes tinham vidro nas janelas -, mas uma cortina de linho impedia a entrada do ar frio do outono. Mas Gwenda não conseguiu divisar uma mancha cinza no lugar em que deveria estar à janela. E sentiu-se contente por isso. Não queria que a manhã chegasse.
Não podia ver nada, mas havia muito para escutar. A palha que cobria o chão sussurrava a todo instante, sempre que as pessoas se mexiam e mudavam de posição no sono. Um criança gritou, como se tivesse sido acordada por um pesadelo, mas foi logo silenciada por palavras de carinho murmuradas. Alguém falava de vez em quando, enunciando palavras truncadas de conversa no sono. Em algum lugar havia o som de duas pessoas fazendo a coisa que os pais faziam, mas sobre a qual nunca falavam, a coisa que Gwenda chamava de grunhido, porque não tinha outra palavra para descrevê-la.
Não demorou muito para que surgisse uma luz. No lado leste do vasto salão, um monge passou pela porta, carregando uma única vela. Colocou-a ao pé do altar, usou a chama para acender uma vela fina e comprida. Saiu pelo salão, encostando a chama nos lampiões nas paredes. Sua sombra comprida subia pela parede a cada vez, a vela de verdade se encontrando com a vela de sombra no pavio de cada lampião.
A claridade crescente iluminava as fileiras de pessoas estendidas no chão, envoltas por seus mantos miseráveis ou aconchegadas contra os vizinhos, em busca de calor. As pessoas doentes ocupavam os catres perto do altar, onde podiam obter o máximo de benefício da santidade do lugar. No lado oposto havia uma escada que levava ao andar superior, que tinha quartos para os visitantes aristocráticos: o conde de Shiring estava ali naquele momento, com sua família.
O monge inclinou-se sobre Gwenda para acender o lampião por cima de sua cabeça. Fitou-a e sorriu. Ela estudou o rosto à luz bruxuleante das chamas e reconheceu- o . Era o irmão Godwyn, jovem e bonito. Na noite anterior ele conversara gentilmente com Philemon.
Ao lado de Gwenda havia outra família de sua aldeia: Samuel, um próspero camponês, que cuidava de uma propriedade grande, a esposa e os dois filhos. O caçula, Wulfric, era um irritante menino de seis anos, que achava que jogar bolotas de carvalho nas meninas e correr em seguida era a coisa mais divertida do mundo.
A família de Gwenda não era próspera. O pai não tinha nenhuma terra e trabalhava para qualquer um que quisesse lhe pagar. Havia sempre trabalho no verão, mas, depois da colheita, quando o tempo começava a esfriar, a família muitas vezes passava fome.
Era por isso que Gwenda tinha de roubar.
Ela se imaginava sendo apanhada: a mão forte de alguém agarrando-a pelo braço; um voz profunda e cruel dizendo "Ora, ora, uma pequena ladra"; a dor e a humilhação de ser açoitada; e, depois, o pior de tudo, a agonia e perda quando sua mão fosse cortada.
O pai sofrera essa punição. Ao final do braço esquerdo tinha um coto horrível, todo enrugado. Ele conseguia fazer as coisas com uma única mão: era capaz de usar uma pá, selar um cavalo, até fazer uma rede para pegar aves. Mesmo assim, era sempre o último trabalhador a ser contratado na primavera e o primeiro a ser dispensado no outono. Nunca poderia deixar a aldeia e procurar trabalho em outros lugares, porque a amputação marcava-o como um ladrão; por isso, as pessoas se recusariam a contratá-lo. Quando viajava, ele amarrava uma luva recheada no coto, para não ser escorraçado por todo estranho que encontrasse; mas isso também não enganava as pessoas por muito tempo.
Gwenda não testemunhara a punição do pai - ocorrera antes do seu nascimento -, mas imaginava-a com freqüência. Agora, não podia deixar de pensar na mesma coisa lhe acontecendo. Em sua mente, via a lâmina do machado descendo para o pulso, cortando pele e ossos, separando a mão do braço, de tal forma que nunca mais seriam religados; e teve de ranger os dentes para não soltar um grito.
As pessoas se levantavam e se esticavam, esfregando o rosto. Gwenda também se levantou e ajeitou as roupas. Todos os seus trajes haviam pertencido antes ao irmão mais velho. Ela usava uma bata de lã que descia até os joelhos, com uma túnica por cima, presas na cintura por um cinto feito de corda de cânhamo. Os sapatos outrora tinham cordões, mas os ilhoses haviam rasgado e os cordões desapareceram. Agora, ela prendia os sapatos nos pés com palha trançada. Assim que juntou os cabelos por baixo de uma touca feita de rabos de esquilo, ela terminou de se arrumar.
Olhou para o pai, que indicou furtivamente uma família ali perto, um casal de meia idade com dois filhos, apenas um pouco maiores que Gwenda. O homem era baixo e franzino, com uma barba ruiva encrespada. Afivelava uma espada na cintura, o que significava que era um homem de armas ou um cavaleiro, já que os homens comuns não tinham permissão para usar espadas. A esposa era magra, com uma atitude brusca e uma expressão mal-humorada. Enquanto Gwenda os examinava, irmão Godwyn acenou com a cabeça, respeitoso, e disse?
- Bom dia, Sir Gerald, lady Maud.
Gwenda viu o que atraíra a atenção do pai. Sir Gerald tinha uma bolsa presa ao cinto por uma tira de couro. A bolsa estava estufada. Devia conter várias centenas de pequenas moedas de prata de pennies, halfpennies e farthings, o dinheiro inglês... tanto quanto o pai poderia ganhar em um ano inteiro de trabalho, se conseguisse arrumar emprego. Seria mais do que suficiente para alimentar a família até o plantio da primavera. A bolsa poderia até conter umas poucas moedas de ouro estrangeiras, como florins de Florença ou ducados de Veneza.
Gwenda tinha uma pequena faca numa bainha de madeira, pendurada por um cordão no pescoço. A lâmina afiada cortaria a tira de couro e faria com que a bolsa estufada caísse em sua mão... a menos que Sir Gerald sentisse alguma coisa estranha e agarrasse antes que cometesse o furto...
Godwyn elevou a voz por cima do rumor das conversas.
- Pelo amor de Cristo, que ensina a caridade, será servida uma refeição depois do serviço de Todos os Santos. Até lá, há água para beber na fonte no pátio. Por favor, não deixem de usar as latrinas lá fora... nada de urinar dentro do prédio!
Os monges e freiras eram rigorosos com a higiene. Ontem à noite, Godwyn surpreendera um menino de seis anos urinando num canto e expulsara toda a família. A menos que tivessem um penny para uma taverna, teriam passado a fria noite de outubro estremecendo no chão de pedra do pórtico norte da catedral. Havia também uma proibição para animais. O cachorro de três pernas de Gwenda, Hop, fora banido. E ela se perguntava onde Hop passara a noite.
Depois que todos os lampiões foram acesos, Godwyn abriu a enorme porta de madeira para o exterior. O ar frio da noite gelou as orelhas e a ponta do nariz de Gwenda. Quando Sir Gerald e a família encaminharam-se para a porta, o pai e a mãe foram atrás. Gwenda e Philemon seguiram o exemplo.
Philemon sempre fora o encarregado de roubar até agora. Mas, no dia anterior, quase fora apanhado, no mercado de Kingsbridge. Palmeara um pequeno pote de óleo caríssimo do estande de um mercador italiano, mas deixara-o cair, à vista de todos. Por sorte, pote não quebrara ao bater no chão. E ele fora obrigado a fingir que o derrubara acidentalmente.
Até bem pouco tempo atrás, Philemon era pequeno e apagado, não chamava a atenção de ninguém. Mas, durante o último ano, crescera bastante, adquirira uma voz profunda, tornara se desajeitado, como se não conseguisse se acostumar ao novo tamanho de seu corpo. Ontem à noite, depois do incidente com o pote de óleo, o pai anunciara que Philemon era agora grande demais para o furto sistemático; dali por diante, essa incumbência seria de Gwenda.
Fora por isso que ela permanecera acordada durante boa parte da noite.
A guerra de Jorge Amado
Hora da Guerra é uma coletânea de textos escritos por Jorge Amado entre 1942 e 1944 no jornal O Imparcial, de Salvador. São artigos inflamados de apoio ao esforço de guerra do Brasil e dos aliados. Amado se coloca do lado certo do conflito — mas também revela uma servil adesão às posições da União Soviética
Pelos bigodes de Stalin...Em seus artigos sobre a II Guerra Mundial, Jorge Amado se coloca do lado certo do conflito – mas também revela uma servil adesão às posições da União Soviética
Comunistas líricos...Jorge Amado (à dir.) com os camaradas Prestes e Pablo Neruda (à esq.): Stalin tinha mãos mágicas e sorriso bondoso
Os comunistas cultivavam gostos estranhos. Tome-se o exemplo de Jorge Amado (1912-2001): o escritor baiano tinha verdadeira fixação nos pêlos faciais do camarada Stalin. Em um artigo de 1943, ao fantasiar a rendição de Hitler, Amado colocava as seguintes palavras na boca do líder nazista: "Stalin, quero alisar o teu bigode, eu te amo". Eis como Amado comemorava as vitórias soviéticas sobre as tropas nazistas, em janeiro do ano seguinte: "O largo sorriso do marechal Josef Stalin, saído de sob os bigodes como um símbolo, é o povo soviético sorrindo". Poucas semanas depois, o romancista de Terras do Sem Fim instalava-se mais uma vez sob as narinas do ditador soviético: "Stalin, o dos longos bigodes, aquele que tem um sorriso de criança inocente na face serena de sábio e de condutor de homens". Essas passagens fetichistas foram extraídas de Hora da Guerra (Companhia das Letras; 266 páginas; 47 reais), coletânea de textos escritos por Jorge Amado entre 1942 e 1944 no jornal O Imparcial, de Salvador. Até hoje inéditos em livro, são artigos inflamados de apoio ao esforço de guerra do Brasil e dos aliados. Não há dúvida de que, naquele tempo beligerante, o autor estava do lado certo da trincheira. Mas, por mais que admiremos o ardor com que Jorge Amado atacava o nazismo, hoje é difícil ignorar a contrapartida dessa atitude: a defesa entusiasmada de outro totalitarismo criminoso, o comunismo.
Em sua excelente introdução a Hora da Guerra, o historiador Boris Fausto observa que Jorge Amado escrevia da "perspectiva política" do Partido Comunista do Brasil, que, por sua vez, seguia as diretrizes de Moscou. Naquele momento, a palavra de ordem do "partidão" era a unidade contra o nazifascismo. Jorge Amado elogiava os esforços de guerra do Estado Novo de Getúlio Vargas, que já o aprisionara e queimara seus livros. Tratava-se, vale insistir, de derrotar o nazismo, objetivo internacional que justificava a aliança estratégica com a ditadura local. Amado, no entanto, não deixou jamais de criticar a censura, como registram alguns dos melhores textos da coletânea. "Estamos lutando contra o obscurantismo, contra aqueles que queimam livros e prendem escritores", diz o autor comunista em Cultura e Democracia. Belos princípios. Mas na União Soviética de Stalin também se prendiam e matavam escritores como o contista Isaac Bábel e o poeta Óssip Mandelstam. Seria mais preciso afirmar que a luta era contra apenas um obscurantismo em particular, o nazismo.
A retórica militante torna o estilo de Amado um tanto pesado. Não estamos diante do romancista lírico de Mar Morto, mas de um propagandista do partido. Ele se mostra vigilante contra simpatizantes do fascismo e supostos traidores da pátria, que chama de "quinta-colunas" e "muniquistas" (alusão ao tratado de Munique, de 1938, assinado por Hitler e pelo primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, que ingenuamente achou possível conter o expansionismo alemão pela negociação). O integralismo, a versão brasileira do fascismo, é exemplarmente ridicularizado pelo autor. Os ataques exaltados de Amado, porém, às vezes extrapolam os limites do justo e do razoável. Ele chega a propor a absolvição de um sujeito que assassinou um italiano em estúpido gesto de retaliação contra o ataque de um submarino fascista a um navio brasileiro. Outro momento vergonhoso do livro é o elogio da proposta soviética para o traçado das fronteiras com a Polônia. Nem uma só palavra é dita sobre o pacto germano-soviético que acarretou a divisão da Polônia entre nazistas e comunistas, em 1939. Ao contrário, o artigo louva a "maneira correta com que a pátria de Stalin resolve seus conflitos internacionais".
Embora os interesses soviéticos sejam sempre defendidos, a pregação estritamente comunista é discreta. Para os fins da propaganda, era contraproducente associar o combate ao nazismo com a luta pelo socialismo. Luís Carlos Prestes, chefão do PCB que Amado exaltara no livro O Cavaleiro da Esperança, nem sequer é citado em Hora da Guerra. Somente Stalin – tirano em cuja conta são debitados pelo menos 20 milhões de mortes – é enaltecido nos termos que já se viu. Jorge Amado não foi o único escritor a cantar loas ao ditador. O poeta chileno Pablo Neruda louvou a "simplicidade" de Stalin e se encantou com suas mãos poderosas, das quais nasciam cereais e tratores. A fixação no bigode, porém, é só de Jorge Amado.
O tirano libertador
“Saudemos com entusiasmo esta ordem do dia do marechal Josef Stalin, o dos longos bigodes e do bondoso sorriso: 180 mil assassinos nazistas estão cercados na Ucrânia”! Comemoraram assim os soldados soviéticos o aniversário da grande vitória de Stalingrado. (...) Os soldados soviéticos marcham com uma decisão inabalável e não existe obstáculo que eles não derrubem, que eles não vençam, que eles não transponham. São soldados da vitória, da liberdade, da cultura...Trecho de Aniversário de Stalingrado
Trecho de A Hora da Guerra, de Jorge Amado
A POESIA TAMBÉM É UMA ARMA...31/12/1942
NUMA MANHÃ DE LUTO PARA A INTELIGÊNCIA, OS NAZIFASCISTAS ITALIANOS E ALEMÃES, QUE usavam a máscara nacionalista de Franco, encostaram num muro de fuzilamento o poeta Federico García Lorca, cantor dos gitanos, da Andaluzia, da beleza de Espanha. Era a voz mais popular e o coração mais ardente que nascera em Granada, e em Granada, a cidade que ele amava sobre todas, os inimigos da Cultura e da Inteligência o fuzilaram. Antonio Machado foi morto, morto num [?] espanhol, nos descreveu a cena em versos que viverão eternamente. Mas também Antonio Machado foi morto, morto num campo de concentração da França já então traída pelos Pétains de vergonhosa velhice, pelos Lavals de sórdida maturidade. Os demais poetas espanhóis andam pelo mundo do exílio para onde foram expulsos pelos criminosos pardos.
Um dia, quando as hordas nazistas "nacionalizaram" a Áustria livre, pátria das valsas, da música amável, da alegria simples, um velho de mais de oitenta anos, Sigmund Freud, que havia reformado a psicologia moderna, foi salvo do muro de fuzilamentos pela democracia inglesa. Mas o abalo moral e os insultos sofridos mataram Freud quase em seguida. Sem pátria, ele não resistiu.
Thomas Mann, o maior escritor vivo da Alemanha, sua maior figura no campo das letras, teve que procurar uma nova pátria nas terras livres da América. Seu crime? É necessário que todos os brasileiros o conheçam: ser filho de mãe brasileira e não ter, por conseqüência, um puro sangue ariano. Não importava a Hitler que o sangue tropical da mulher brasileira que corria nas veias de Thomas Mann tivesse contribuído poderosamente para a maravilha do romance moderno que é A montanha mágica. Thomas Mann foi expulso da Alemanha e das universidades. E, com ele, Heinrich Mann, seu irmão, dos mais lidos romancistas de hoje. Remarque, Ludwig, Zweig, que depois iria se matar, legiões de poetas, sábios e artistas que não queriam baixar à desgraça de apoiar as idéias nazistas, tiveram que fugir da Alemanha e dos países ocupados. Einstein, o gênio primeiro das matemáticas no século xx, ia à frente dos fugitivos da inteligência e da cultura. Esse foi, sem dúvida, o mais degradante espetáculo que o mundo já assistiu: os monstros da Gestapo, entre gargalhadas bestiais, expulsando das suas pátrias o que havia de mais profundo na inteligência universal. Hoje, aos sábios e escritores alemães, austríacos e espanhóis, se juntaram os de todas as nações ocupadas, não porém vencidas. Não faz muito li um emocionante apelo da Sociedade de Escritores dos Estados Unidos, que Theodore Dreiser preside, em favor dos artistas, escritores e sábios que, expulsos das suas pátrias sob o terror nazi, sofrem as maiores dificuldades econômicas. Outros - como Lessig, Ascher, Silberschmidt - são assassinados nos campos de concentração.
Não é preciso repetir que o nazismo, acima de tudo, odeia a inteligência e a cultura. Bem sabe ele que estas são armas da liberdade e que, enquanto elas existam, não lhe é possível dominar o mundo. Todos nós sabemos disso. Por que então os escritores todos, todos os artistas, os sábios e os poetas, não se atiram à luta real e decidida contra a ameaça de escravidão nazista que pesa sobre o mundo e sobre o Brasil? Por que alguns se deixam ficar, cômoda e criminosamente, perdidos em sonetos e em poemas, em inoportunas discussões de ordem estética?
É esta pergunta que ressalta do artigo de Jacinta Passos, no O Imparcial de ontem. É esta pergunta também que se traduz no chamado à unidade dos escritores, que Clóvis Amorim publicou há dias na A Tarde. Eis aí umas das vozes mais altas da atual poesia brasileira e um dos nomes que lideram o romance moderno do Brasil, tendo ambos uma visão real do problema imediato dos escritores e artistas. Unidade e ação. Estas vozes baianas vêm se juntar àquelas outras de José Lins do Rego, Erico Verissimo, Marques Rebelo, Augusto Frederico Schmidt, Wilson Lins e Graciliano Ramos, que, em entrevistas, artigos e discursos têm chamado os escritores à unidade e à ação. Vozes que representam setores diversos da inteligência brasileira, homens católicos, homens da arte social e homens da "arte pela arte". É preciso compreender que não serão somente os escritores da esquerda que sofrerão com a escravidão nazista. O ódio bestial do nazismo contra a inteligência atingirá, indistintamente, a todos os artistas e escritores. Mesmo porque se algum apoiar a indignidade germano-fascista ele deixa de ser um escritor ou um artista: é apenas um nazi traidor da pátria. Se o nazismo dominasse o mundo sofreríamos nós todos, homens da cultura e da beleza. Nós todos, sem exceção.
Por tudo isso quero trazer imediatamente meu apoio à idéia de Jacinta Passos de que os escritores e artistas baianos se reúnam numa Legião da Cultura para a Vitória. E concito, em nome da dignidade da inteligência ultrajada por Hitler e por seus cúmplices, os demais artistas e escritores da Bahia a formarem nela. Leal e francamente, estendo minha mão a todos os demais escritores. De parte todas as diferenças de ordem estética. Lado a lado, acadêmicos e modernos, católicos e livre-pensadores, escritores da "arte pela arte" e escritores da arte social. Para provarmos ao nazismo que a poesia é realmente uma arma do povo, da liberdade e da pátria.
Os criminosos nazis destruíram, faz pouco, o museu em que fora transformada a casa de Tolstói. Mataram alguns dos melhores poetas do mundo, exilaram toda a inteligência e a cultura dos países que ocuparam. Em nome do Brasil e em nome da cultura estamos nós, os escritores e artistas, em guerra contra o nipo-nazifascismo. Vamos provar que as nossas armas sabem também ferir e matar.





Conflitos sem política
A.B. Yehoshua e David Grossman têm posições controversas na cena pública de Israel, mas não fazem literatura engajada. Na ficção deles, o que interessa é o conflito humano. Em A Mulher de Jerusalém, de Yehoshua, e Desvario, de Grossman, o mais importante é o drama individual dos personagens.
O palco é político, mas o drama é individual...Os escritores A.B. Yehoshua e David Grossman têm posições controversas na cena pública de Israel, mas não fazem literatura engajada. Na ficção deles, o que interessa é o conflito humano
A DOR NÃO TEM PARTIDO...Israelenses choram por vítima de atentado terrorista – como a amiga a quem Yehoshua dedicou seu romance
David Grossman, A.B. Yehoshua e Amós Oz formam a tríade de escritores israelenses que, como profetas bíblicos, têm funcionado como a consciência viva do país. Os três nasceram naquela que é talvez a mais dramática cidade do mundo, Jerusalém, fato que já os diferencia de escritores israelenses de gerações anteriores, muitos deles imigrantes. Intelectuais de renome internacional, multipremiados e multitraduzidos, mostram-se sempre atuantes na política de Israel. Na última guerra do Líbano, por exemplo, inicialmente apoiaram Israel, mas, em agosto de 2006, convocaram uma conferência de imprensa na qual apelaram ao governo para que aceitasse um cessar-fogo. Apesar de suas conhecidas e às vezes controversas posições políticas, nenhum deles faz ficção engajada, como o leitor poderá verificar em obras de dois desses autores recém-lançadas pela Companhia das Letras – A Mulher de Jerusalém (tradução de Nancy Rozenchan; 278 páginas; 47 reais), de Yehoshua, e Desvario (tradução de George Schlesinger; 328 páginas; 51 reais), de Grossman. A situação conflituosa de Israel aparece de forma somente indireta nesses livros, nos quais interessa mais o drama individual dos personagens.
Nascido em 1954, David Grossman é o mais moço do trio maior da literatura israelense. É um autor de muitas faces, que varia de gênero e temática de livro para livro. Durante a guerra do Líbano passou por um doloroso transe: seu filho Uri, de 20 anos, sargento numa unidade de tanques, foi morto em combate. À ocasião, Grossman escreveu um pungente texto, em que diz: "Aprendi com Uri que precisamos nos proteger do pensamento simplista, do cinismo, da corrupção de nossos corações e do tratamento cruel dos seres humanos, a maior maldição para aqueles que, como nós, vivem numa região conflagrada". Desvario reúne duas novelas. A narrativa que dá título ao livro tem como cenário o interior de um carro. Do banco de trás, o cinquentão Shaul Krauss, com a perna fraturada após um acidente, fala à cunhada sobre seu relacionamento com a esposa, que há dez anos tem (ou assim Shaul o imagina: o personagem é uma espécie de Dom Casmurro israelense) um caso com um cartunista desempregado que imigrou da Rússia. Sua narrativa mobiliza os sentimentos da cunhada, até o surpreendente final. Na segunda história, No Corpo Eu Entendo, temos também a relação acidentada de duas personagens, Níli, uma mulher em seu leito de morte, e Rotem, sua filha mais velha. A narrativa se desdobra ainda em um conto escrito por Rotem, sobre uma professora de ioga e seu aluno adolescente – uma relação sensual, mediada pelo corpo do garoto.
A.B. Yehoshua, nascido em 1936, é conhecido pelo temperamento explosivo e pelos pronunciamentos controversos. Para ele, judaísmo verdadeiro só existe em Israel, uma posição que enfureceu intelectuais judeus americanos num encontro realizado em Nova York, em 2006. Nem por isso ele deixa de ser um crítico às vezes destemperado da política israelense: em entrevista ao jornal italiano La Stampa, Yehoshua recentemente sugeriu que os Estados Unidos retirassem o embaixador de Israel até que o governo Olmert terminasse com os assentamentos na Cisjordânia. A Mulher de Jerusalém é dedicado à memória de Dafna, amiga morta num atentado terrorista realizado na capital israelense em 2002. A novela tem um início sombrio: o cadáver de uma mulher desconhecida jaz numa morgue em Jerusalém; como Dafna, foi vítima de um atentado terrorista. Descobre-se que ela é Yulia Ragayev, uma não-judia imigrada de uma pequena república da ex-União Soviética – e caberá ao encarregado de recursos humanos do panifício onde ela trabalhava transladar o corpo de volta à sua aldeia natal. A narrativa é ágil, movimentada, numa prosa mais coloquial e vibrante do que a linguagem reflexiva e metafórica de Grossman.
A Mulher de Jerusalém faz referências ao bloqueio de cidades palestinas – mas o conflito israelense-palestino não está no centro deste livro (e muito menos no de Grossman). Há, no entanto, uma mensagem sutil sobre Jerusalém e sua situação política. Se Yulia saiu de sua terra para radicar-se lá, é porque "acreditava que nessa cidade desgastada havia alguma coisa que lhe pertencia também". As conotações dessa mensagem estão de acordo com o posicionamento do autor, para quem Jerusalém é a capital do estado de Israel mas, com toda a sua carga histórica e religiosa, é também um patrimônio da humanidade. Para os fins da ficção, Jerusalém é sobretudo o cenário para envolventes dramas humanos descritos por esses dois excelentes escritores.
Trecho de A Mulher de Jerusalém, de A.B. Yehoshua
Mesmo que o encarregado de recursos humanos não tivesse procurado para si esta missão, agora, na suave radiação da manhã, compreendeu que dela provinha um significado inesperado. E quando, junto à fogueira agonizante, lhe foi traduzido e esclarecido o espantoso pedido da velha senhora em hábito de freira, foi tomado de entusiasmo. E esta Jerusalém desgastada e sofredora, da qual partira havia uma semana, renovou-se para ele repentinamente com o esplendor de sua importância, aquela dos dias da infância.
A extraordinária missão tivera origem em um erro burocrático simples, remediável - depois da advertência prévia do editor de um semanário de Jerusalém - com uma explicação aceitável, talvez acompanhada de um breve pedido de desculpa. Mas o dono da fábrica, um velho resoluto, de oitenta e sete anos, foi tomado de um pavor exagerado quanto à sua reputação; e aquela desculpa simples que seria capaz de fazer com que a questão toda fosse esquecida, não lhe era suficiente; ele exigiu de si mesmo e dos subordinados um arrependimento concreto, uma demonstração nítida de expiação que acabou originando aquela viagem a um horizonte distante.
Mas o que foi que aborreceu o velho? O que lhe despertou um ímpeto quase religioso? Terá sido por que os dias sinistros que traspassavam todo o país, e Jerusalém em especial, não haviam reduzido as suas rendas, mas justamente o contrário? E o seu sucesso o obrigava, ante as dificuldades e até os colapsos das fábricas ao redor, a se preservar sete vezes mais de um ressentimento público que, por enorme ironia, ainda seria impresso em papel que ele próprio fornece ao jornal? É verdade que o jornalista, um eterno doutorando de ciências humanas, radical da moralidade local, cuja intimidade com Jerusalém o deixava à vontade, inicialmente não imaginava qual a origem do papel em que a sua reportagem mordaz seria publicada; e, mesmo se soubesse, teria abrandado alguma palavra? Porém o editor, que também era o dono do jornal, leu o rascunho, examinou a foto do holerite manchado encontrado na sacola da mulher morta, e prontamente achou conveniente se antecipar e solicitar uma resposta ou desculpa do próprio dono da fábrica, para não surpreender um amigo - ainda mais na véspera do sábado - com uma história que empanaria suas relações.
Era de fato uma história difícil e especial? Com certeza não. Mas em dias tão terríveis, quando se transformava em rotina o estraçalhamento de transeuntes, era justamente de lugares inesperados que irrompia uma sensibilidade moral. E, por isso, ao final de um dia de trabalho, quando o encarregado de recursos humanos tentou escapar do chamado do dono da fábrica, porque pela manhã havia jurado à ex-mulher voltar cedo do trabalho e ficar o fim de tarde e a noite inteira completamente à disposição da filha única, a secretária do velho não lhe permitiu adiar o encontro. Como percebera a inquietação que tomara o dono da fábrica, ela tratou de sugerir ao funcionário queixoso que arranjasse um substituto para os deveres familiares dessa noite.
É verdade que, em geral, reinavam relações afetuosas e de confiança entre o encarregado e o dono da fábrica, desde o período em que o encarregado ainda era representante de vendas e tinha descoberto mercados surpreendentes no Terceiro Mundo para o novo ramo de produtos de papel e papelaria. Porém, quando o casamento do encarregado começou a desmoronar, inclusive, talvez, em razão de suas muitas viagens, o velho concordou, ainda que com o coração pesado, em liberá-lo de sua função e realocá-lo, por enquanto, como encarregado dos assuntos de recursos humanos da fábrica inteira, a fim de que pudesse ao menos dormir em casa e tentar consertar o que havia se deteriorado. No entanto, a hostilidade que se acumulara em sua ausência acabou se destilando em veneno com sua presença, e a separação deles, inicialmente emocional, depois intelectual e, por fim, também sexual, já fluía por si. Depois do divórcio, porém, ele não se apressou em retornar ao cargo anterior, que apreciava, pois queria recuperar ao menos a confiança da filha única.
Já à porta da grande sala da diretoria, em que habitualmente se conservava uma obscuridade suave e nobre durante todas as horas do dia e em todas as estações do ano, foi-lhe lançada, num tom dramático, a essência da história que estava para ser publicada no semanário no fim de semana.
"Nossa funcionária?" O encarregado resiste em aceitar o fato. "Não é possível. Eu saberia. É um engano."
O dono da fábrica não responde, apenas lhe entrega o rascunho da reportagem, que o funcionário lê, ainda de pé, rapidamente, e cujo título difamatório era: Chocante falta de humanidade dos produtores e fornecedores do nosso pão.
Uma mulher de cerca de quarenta anos, que não portava nenhum documento de identificação, exceto o holerite da fábrica do último mês, roto, manchado e sem nome, na semana anterior fora atingida na feira de forma fatal, e durante dois dias lutara pela vida sem que nenhum de seus companheiros de trabalho ou superiores se interessasse por seu estado. Ainda depois da morte ela continua anônima e sozinha no necrotério do hospital, enquanto a diretoria da fábrica segue ignorando seu destino, sem que ninguém se ocupe de seu enterro. E aqui vinha uma descrição breve da fábrica - a grande e famosa panificadora fundada no início do século pelo avô do velho, com seu novo ramo de papel e papelaria. Havia duas fotografias que identificavam nitidamente os responsáveis: uma era do dono da fábrica, oficial e antiga, de muitos anos antes, a outra do encarregado de recursos humanos, recente, escura e borrada, tirada sem o seu conhecimento, acrescida de uma observação maldosa, de que merecera a atual função apenas por causa do divórcio.
"Uma verdadeira víbora", balbucia o funcionário, "quanto veneno é possível condensar numa reportagem curta..."
O velho, porém, exige ação e não apenas descontentamento. Se hoje as coisas funcionam assim, não é isso que se deve combater, mas a acusação. E como o editor os trata de forma correta e concorda em publicar junto à reportagem uma resposta ou uma desculpa, a fim de aplacar uma condenação que poderá se instalar nos corações se esperarem o jornal da semana seguinte, é preciso se organizar imediatamente e esclarecer tudo a respeito da funcionária que foi morta, e como e por que passara despercebida. E, talvez, por que não?, tentar um encontro com o próprio jornalista, para verificar o que mais ele sabe. Pois pode haver mais alguma armadilha escondida ali.
Em outras palavras, o encarregado devia deixar de lado qualquer outro assunto e dedicar-se somente a esse caso. Porque não só férias e doenças, partos e demissões estão sob a responsabilidade do setor do pessoal, mas também a própria morte. E a estocada de "falta de humanidade", de alheamento por sovinice, se fosse publicada sem explicação ou mesmo desculpa, poderia despertar um protesto que talvez se refletisse nas vendas. Afinal, aquela não era uma panificadora anônima; e o nome da família dos fundadores está colado em cada pão que sai dali. Logo, para que oferecer uma pequena tentação aos concorrentes sequiosos de vingança...
"Vingança?" O encarregado dá um risinho. "O senhor está exagerando bastante. A quem é que acha que isso tudo interessa?, ainda mais em dias como estes..."
"A mim isso interessa", responde irado o dono da fábrica, "e justamente em dias como estes..."
O encarregado inclina a cabeça, dobra a reportagem e, com o gesto apropriado, a faz desaparecer no bolso, numa tentativa de encerrar a conversa antes que a intempestividade do velho o transforme em responsável não somente por uma pequena negligência administrativa, mas também pelo próprio atentado. "Não se preocupe", ele o acalma com um breve sorriso, "vou tratar do caso. Amanhã de manhã. A primeira coisa."
Então o velho, alto, pesado, muito pálido, em um terno elegante e com um antigo topete pairando na obscuridade como uma pomba majestosa, se endireita. O temor pelo seu bom nome pesa enormemente na mão que agarra o ombro do subordinado. "Não amanhã de manhã" - a ordem é dita lentamente e com bastante nitidez - "mas agora. Esta noite. Não há tempo. A história toda deve estar esclarecida ao amanhecer, para que seja possível enviar uma resposta concreta ao jornal pela manhã."
"Esta noite?", o encarregado explode, "não, desculpe, já é tarde..." Ele precisa voar para casa. A mulher, isto é, a ex, não estará em Jerusalém, e ele lhe tinha jurado buscar a filha para que a menina não se arriscasse no transporte público. "E qual a urgência? Esse maldito jornaleco só sai na sexta-feira, e hoje ainda é terça. Há tempo."
No entanto, a preocupação do dono da fábrica por sua humanidade o endurece. "Não, não há tempo. Amanhã à noite eles fecham o jornal e, se a resposta demorar, não será publicada neste fim de semana, somente no próximo, e assim vamos ficar expostos durante uma semana inteira. Portanto, se você se recusa a assumir imediatamente essa história, é só avisar, e posso encontrar um substituto. Talvez também para o seu cargo..."
"Mas... um momento... desculpe...", atrapalha-se o encarregado, ferido pela ameaça lançada com tanta facilidade: "E a minha filha? Quem é que poderá me substituir nisso? E a mãe dela", acrescenta com amargura, "você há conheceu um pouco, ela vai me matar...".
"Ela substituirá você", o dono da fábrica o interrompe e aponta um dedo firme para a chefe do escritório, cujo rosto enrubesce ao escutar a função que lhe fora repentinamente imposta sem que se perguntasse se estava de acordo.
"Me substituirá? Como?"
"É o que você está ouvindo. Ela levará sua filha onde ela quiser e cuidará dela como se fosse sua. Porque a partir deste momento todos nós estamos engajados em demonstrar que também somos humanos, não menos do que esse peçonhento, e que nossa humanidade nos é cara. Pense, homem, há outro jeito? Não."
Trecho de Desvario, de David Grossmann
Como ela agüenta isso?, pensa ele, todos esses rituais meticulosos que é obrigada a refazer, percorrendo nervosamente os quartos antes de sair, batendo as portas dos armários, abrindo e fechando gavetas, algo contrito e opaco toma conta de seu belo rosto nesses momentos, Deus a livre de esquecer algum detalhe, algum pente, livro, frasco de xampu - tudo poderia desmoronar. Ele senta à sua escrivaninha vazia com a cabeça apoiada entre as mãos, enquanto ela joga um aceno apressado da porta, e seu coração afunda, ela nem sequer chega perto para se despedir; hoje haverá algo especial lá, ela sai correndo para a rua, olhos baixos para evitar contato visual e alguma conversa supérflua. Como é que ela não desiste? De onde tira forças para passar por isso a cada dia de novo?
Em seguida, como que baixando a guarda, ele fecha os olhos e se apressa em acompanhá-la enquanto ela entra no carro, um minúsculo Polo verde-claro. Ele o comprou de surpresa para ela, que ficou horrorizada com a cor e reclamou que era muito extravagante. Mas ele queria que ela tivesse seu próprio carro, para se locomover livremente, para que não fiquemos brigando o tempo todo por causa do carro, disse. E quis que ela tivesse um carro muito verde. Na sua fantasia, era como se fosse um dispositivo eletrônico brilhante injetado na corrente sanguínea dela de modo a poder ser monitorado por uma câmera. Lentamente, ele vai apoiando a cabeça no encosto do assento, e ela dirige, a face tensa, próxima demais do pára-brisa. Ela vai levar cerca de oito a nove minutos para chegar, e é preciso acrescentar ainda um eventual atraso inesperado (um engarrafamento, algum farol quebrado, o homem que está à sua espera lá no apartamento não achar as chaves e demorar para abrir a porta), e lá se vão mais quatro ou cinco minutos preciosos. Elisheva, ele diz em voz alta, com vagar, pronunciando cada sílaba.
E diz mais uma vez, para aquele homem.
O homem que poupa cada instante necessário para se despir, que não perde tempo pois cada segundo é valioso, e, enquanto ela conduz o veículo por entre as ruelas estreitas que ligam uma casa à outra, ele já vai tirando a roupa, no quarto ou talvez perto da porta, desce as calças largas de veludo marrom, tira a folgada camisa de cor indefinida, que um dia também foi marrom, ou cor de laranja, ou talvez até mesmo rosa, ele é bem capaz de usar uma camisa rosa, que importa o que vão pensar?, é isso que é bonito nele, reflete Shaul, que ele não se importa com nada, nem com o que vão pensar nem com o que vão dizer, essa é à força dele, sua saudável integridade interior; aparentemente é isso que tanto a atrai.
Ela vai ao encontro dele, dispara ao encontro dele, olhos fixos no caminho, boca tensionada. Daí a pouco essa boca será beijada e há de relaxar, engolir, arder, os lábios deslizarão sobre aqueles outros lábios, de início apenas superficialmente, tocando sem tocar, então virá uma língua e desenhará seu contorno dando voltas e mais voltas, e os lábios tentarão não sorrir, e logo se ouvirá um murmúrio de prazer, não se mexa enquanto eu desenho, e de dentro dela sairá um grunhido de concordância, e aí os lábios dele se fixarão nos dela e, com toda a sua agressividade ríspida, masculina, vão sugá-los; depois se afastarão por um instante, deixando passar um suspiro quente. Por fim, os lábios vão se encontrar de novo, agora com a solenidade de um desejo realmente intenso, as línguas se entrelaçando como se fossem criaturas com vida própria, e os olhos dela se abrirão por um breve momento com um suspiro suave, os globos oculares se revirando um pouco para em seguida sumir. Sob as pálpebras semicerradas se revela uma brancura vazia, assustadora.
Ela é uma mulher grande, Elisheva, generosa também de corpo. É até mesmo um pouco grande para um carro tão pequeno, e talvez por isso tenha achado ruim que ele tenha lhe comprado um Polo, e talvez também por isso ele tenha escolhido justamente o Polo, quem pode saber, é só agora que isso lhe ocorre, por causa da sensação de que ela está praticamente rompendo a concha a caminho de lá, quase explodindo ao encontro dele enquanto se esforça para se concentrar no caminho, deleitando- se com a suposição de que o homem à sua espera esteja neste instante pensando exatamente a mesma coisa, dessa forma ganhamos mais alguns momentos juntos, ela lhe dissera uma vez.
Ela avança, o carro verde circula dentro da rede de artérias que se estende daqui até ele, e, quando Shaul emerge da onda de dor, ela já está lá, com ele, Shaul pode vê-lo ligeiramente, uma mancha de calor grande e larga, braços sólidos, e o rápido gesto dela pondo a mão sobre seu ombro e se curvando para tirar os sapatos sem desafivelá-los, os dedos ansiosos e desejosos percorrendo o corpo dele nu, as roupas já espalhadas a seus pés, e as roupas dela caindo sobre as dele. Shaul fecha os olhos e absorve o golpe representado pela mistura de tecidos, e dói tanto que ele é obrigado a desviar o olhar das roupas para o homem, pois neste momento o homem em si é menos doloroso que as roupas jogadas umas sobre as outras, o homem que se antecipou e se despiu para ganhar alguns segundos preciosos, e esperou por ela ansiosamente, andando pela casa nu, ardendo de excitação, estimulando-se com pensamentos na mulher grande, bonita e determinada, que corre para se encontrar com ele no seu carrinho verde e sexy foi à palavra usada pelo rapaz moreno que vendeu o carro a Shaul, e foi essa palavra que convenceu Shaul a comprá-lo -, e nu ele zanza rápido pelo apartamento, mesmo sendo um homem bastante lento por natureza. Shaul consegue de fato ver cada gesto seu, um por um, e seu jeito de andar e falar um tanto pesado, autoritário; mas, agora, ele está todo inquieto, pois os passos dela já sobem correndo as escadas, e pronto, eis que afinal ela chega mesmo, e ele já vai lhe abrir a porta, escolhendo bem a posição como a receberá, pois sua nudez, como dizer, talvez não agrade tanto a Elisheva, especialmente em pé, especialmente à luz do dia, que decerto não favorece as numerosas dobras que pontilham sua barriga e seu peito, nem os grandes e vigorosos músculos peitorais, nem os abundantes pêlos grisalhos; mas, hoje, ao ouvir os passos correndo escada acima, ele só abre um pouco a porta, e corre para a cama no quarto imerso na penumbra, e se deita numa posição provocativa, de bruços, um dos joelhos ligeiramente dobrado, como se tivesse dado um rápido e gostoso cochilo logo depois de ter lhe aberto à porta, dormitando com a tranqüilidade de um homem saudável sem problemas de digestão ou consciência, de modo que aos olhos dela, quando ela entra, revelam-se primeiro suas costas de aparência forte - e fortes de fato -, em seguida as nádegas e pernas que, nessa posição, têm um aspecto quase jovem; ela pára por um momento, dá uma olhada, sorri consigo mesma, então vai até a cama e, com calculada delicadeza, passa um dedo ao longo das costas dele, do pescoço até as nádegas, depois se curva e passa a língua vagarosamente, cuidadosamente, de um lado ao outro do pescoço, só a ponta da língua, só um ligeiro sinal da umidade de sua boca, e ele estremece e, com um grunhido, enfia a cabeça no travesseiro, como que decapitado.
A CIA, um mito
O mito da importância e da infalibilidade da agência de inteligência americana, CIA, é desmascarado por Tim Weiner, jornalista do New York Times especializado no assunto, em seu Legado de Cinzas. A obra mostra que o serviço secreto americano não oferece mais do que uma crônica entre ridícula e trágica de erros, fracassos e desastres.
O fracasso da inteligênCIA...A despeito de sua fama de onipotência, o serviço secreto americano tem em sua história uma trágica sucessão de desastres
Muita gente acredita que a CIA, a agência central de espionagem americana, esteve por trás de todos os golpes de estado, assassinatos políticos e eleições manipuladas das últimas décadas. Agentes secretos e espiões americanos estariam em toda parte, manipulando as cordas da política internacional. Trocando em miúdos, a história contemporânea se resumiria num texto escrito pela Casa Branca com a caneta da CIA. Esse mito da importância e da infalibilidade da agência americana é desmascarado por Tim Weiner, jornalista do New York Times especializado no assunto e ganhador do Prêmio Pulitzer, em seu Legado de Cinzas (tradução de Bruno Casotti; Record; 742 páginas; 65 reais), que chega nesta semana às livrarias brasileiras. A obra mostra que o serviço secreto do país mais rico e poderoso do planeta não oferece mais do que uma crônica entre ridícula e trágica de erros, fracassos e desastres.
Malgrado seu suposto poder, a CIA é relativamente nova. Sem grande interesse pelo restante do mundo e protegidos por dois oceanos, os Estados Unidos acreditavam não precisar se informar sobre o que se passava muito além de suas fronteiras. Foi apenas durante a II Guerra que tal necessidade se fez sentir. No decorrer do conflito, suas Forças Armadas desenvolveram um serviço de informações, o OSS, do qual surgiria a CIA, em 1947, já no início da Guerra Fria. Segundo Weiner, além de ser, entre as potências relevantes, a última a criar uma organização similar (séculos após ingleses, franceses e russos), os EUA eram igualmente aquela menos preparada para fazê-lo, pois o funcionamento efetivo dos serviços secretos se contrapõe ao modo como vive e opera uma democracia moderna e avessa ao sigilo.
A ficha corrida da agência, em seus sessenta anos de existência, é negra, não porque tenha jogado sujo ou aplicado golpes baixos (as rivais fizeram o mesmo), mas porque não promoveu como se esperava os interesses do país. O nome do livro é tirado de uma altercação entre Eisenhower e o diretor da CIA Allen Dulles, na qual o presidente, no fim de seu segundo mandato e frustrado por ter falhado na reforma da agência, afirmou irritado que deixaria ao sucessor um "legado de cinzas". O que o título sugere é o que o texto oferece: um compêndio de asneiras, mal-entendidos e fiascos acompanhados freqüentemente da tentativa de ocultá-los tanto dos sucessivos presidentes e do Congresso como da imprensa e do público.
A organização estreou tateando no escuro e, ao que consta, nunca achou um interruptor decente. Dedicada em seus primórdios a depor os regimes comunistas do Leste Europeu infiltrando opositores exilados, armando guerrilheiros potenciais (e sem pudor de recorrer a antigos colaboradores dos nazistas e membros da SS), ela desperdiçou tempo, dinheiro e esforço mandando gente despreparada para a morte certa em lugares como a Ucrânia, a Albânia, a Polônia – e, do lado oposto da Eurásia, a China e a Coréia do Norte –, até coroar essas iniciativas com o desastre que foi o desembarque de cerca de 1500 exilados cubanos na Baía dos Porcos em 1961, uma tentativa de derrubar o governo que o exército local neutralizou em menos de três dias.
Dotada de recursos quase ilimitados, a CIA usou-os na aquisição de informação falsa ou de desinformação cuidadosamente fornecida pelos inimigos. Contra-inteligência não era o seu forte, e agentes duplos como Aldrich Ames operaram anos sem ser detectados, comprometendo os poucos espiões de que a CIA dispunha na União Soviética (Ames só seria descoberto e preso em 1994, três anos depois da dissolução do império inimigo ao qual vendera segredos cruciais). O primeiro teste nuclear russo pegou a CIA de surpresa em 1949, assim como, um ano depois, a agressão norte-coreana que deflagrou a guerra na península asiática e, logo em seguida, a intervenção chinesa. A agência só soube dos mísseis soviéticos apontados para Washington quando estes estavam firmemente instalados em Cuba, em 1962. Nunca entendeu a estratégia do Vietnã do Norte e de seus clientes vietcongues, e deixou o país perder um aliado importantíssimo, o xá do Irã, em 1979, sem ter idéia do regime hostil que o sucederia. Tampouco previu, na mesma época, a invasão russa do Afeganistão. Ignorando a natureza profunda da União Soviética e de sua economia decrépita, ela não esperava a queda do Muro de Berlim. Incapaz de achar seu lugar num mundo posterior à Guerra Fria e posta de lado por um presidente como Clinton, que julgava as questões geopolíticas coisa do passado, não avaliou direito os novos perigos que ameaçavam os Estados Unidos nem deu ao terror islâmico a atenção que merecia antes dos mega-atentados que a colheram despreparada.
Quanto aos golpes de estado que a CIA deu ou encorajou nos quatro cantos do globo, da Guatemala e Irã nos anos 50 ao Brasil nos anos 60, Chile nos anos 70 e assim por diante, o autor os vê como imorais, contraproducentes e, em geral, desnecessários. Algumas vezes, a agência achou conveniente eliminar gente que apoiara, como o presidente sul-vietnamita Ngo Dinh Diem (deposto em 1963), um católico místico que, em vez de se opor aos comunistas do norte, pôs-se a hostilizar a maioria budista do país. Outras vezes, seus tiros saíram pela culatra: a conseqüência da derrubada do nacionalista iraniano Mosaddeq, em 1953, seria, dois decênios mais tarde, a ascensão dos aiatolás, e os guerrilheiros islâmicos apoiados pela agência na luta contra a ocupação soviética do Afeganistão se tornariam os futuros integrantes do Talibã e da Al Qaeda.
A tese que o autor promove não o deixa, porém, esclarecer os parâmetros segundo os quais avalia a agência. Será que, por exemplo, a KGB, incapaz de convencer os ocupantes do Kremlin de que o capitalismo não estava prestes a falir, ou o Mossad e os demais serviços israelenses, que não previram o ataque sírio-egípcio de 1973 (Guerra do Yom Kipur), tiveram um desempenho tão melhor? Afinal, os Estados Unidos ganharam a Guerra Fria, e desafia a imaginação pensar que todos os recursos tecnológicos desenvolvidos pela CIA, todas as informações que coletou e analisou, todas as suas intervenções não serviram para nada. Weiner encerra sua narrativa, datada do ano passado, pintando com tintas negras o cenário do recente fiasco americano: a Guerra do Iraque. Ocorre que, desde então, mesmo a imprensa liberal do país parece disposta a admitir ao menos a possibilidade de uma vitória. Seja como for, esta história seletiva da CIA dá, entre outras coisas, um panorama sério dos anos da Guerra Fria e posteriores ao descrever a trajetória de um serviço de inteligência que jamais andou longe do centro dos acontecimentos. Mais do que isso, o livro mostra, por meio de um caso exemplar, como qualquer organização estatal, especialmente se conta com muita verba e supervisão mínima, acaba desenvolvendo uma viciosa cultura interna e passa a se dedicar, sobretudo à autopreservação. Essa dinâmica, quando acomete os serviços secretos, representa um perigo grave para a liberdade. Que sejam as instâncias representativas e eleitas que, nos Estados Unidos, mandem neles, e não (como sucede ainda hoje na Rússia de Putin, não por acaso um ex-agente da KGB) o contrário, é uma notícia reconfortante para os que apostam na democracia.
Uma história de fiascos
Alguns dos erros que marcaram a trajetória da CIA, a agência de informação americana
BOMBA SOVIÉTICA...Em 1949, enquanto a Força Aérea americana analisava traços de radioatividade na atmosfera que confirmariam o primeiro teste nuclear soviético, a CIA garantia ao governo que a União Soviética levaria quatro anos para desenvolver sua bomba.
GUERRA DA CORÉIA...Enquanto a CIA se concentrava na possibilidade de uma guerra na Europa, em 1950 os americanos e seus aliados foram atacados de surpresa na Coréia. A CIA teria assegurado que a China não se envolveria na guerra, mais uma previsão equivocada.
TÚNEL SOB BERLIM...A CIA e a inteligência britânica cavaram um túnel sob Berlim, entre 1954 e 1955, e interceptaram o cabo usado na comunicação entre soviéticos e alemães-orientais. Mas os russos sabiam da interceptação. Tudo indica que a utilizaram para suprir de desinformação os aliados.
BAÍA DOS PORCOS...Arquitetado pela CIA, o plano de invadir Cuba e derrubar Fidel Castro, em 1961, já era conhecido pelos cubanos, que derrotaram os invasores na Baía dos Porcos. O incidente azedou de vez as relações entre Cuba e Estados Unidos.
11 DE SETEMBRO...Os planos da Al Qaeda para um ataque em território americano já estavam avançados no fim do governo Clinton. Alguns analistas da CIA suspeitavam disso, mas a agência não conseguira penetrar na organização terrorista. A surpresa, em 11 de setembro de 2001, foi total.
O continente esquecido
Faz tempo que a América Latina nutre uma espécie de paixão não muito correspondida pela CIA, vista como agente importantíssimo e constante da política local. Combinam-se, para tanto, instabilidade regional, uma mentalidade conspiratória e, por que não, até fatos comprovados. A região, porém, ocupa espaço modesto na narrativa de Tim Weiner. O golpe de 1964 no Brasil é mencionado de passagem, enquanto as demais nações sul-americanas – salvo o Chile do golpe militar, que, com o apoio da CIA, depôs Salvador Allende, em 1973 – mal aparecem. México, Guatemala e Nicarágua são discutidos com certa atenção. A grande estrela latino-americana de Legado de Cinzas é Cuba. Protagonizando duas crises internacionais, a da Baía dos Porcos e a dos mísseis, a ilha chegou ao centro das preocupações americanas na administração democrata de Kennedy. O presidente e, sobretudo, seu irmão Robert eram guerreiros frios convictos, cujo entusiasmo pela espionagem e pelas operações especiais se contrapunha à cautela do predecessor, Eisenhower, que, não obstante ser general e republicano, desconfiava do "complexo militar-industrial".

Trecho de Legado de Cinzas, de Tim Weiner
PARTE UM
"No começo, não sabíamos nada"...A CIA sob Truman 1945 a 1953
1 "A INTELIGÊNCIA PRECISA SER GLOBAL E TOTALITÁRIA"
Tudo o que Harry Truman queria era um jornal.
Catapultado à Casa Branca pela morte do presidente Franklin D. Roosevelt em 12 de abril de 1945, Truman nada sabia sobre o desenvolvimento da bomba atômica ou sobre as intenções de seus aliados soviéticos. Precisava de informações para usar seu poder.
"Quando assumi o governo", escreveu ele numa carta a um amigo anos depois, "o presidente não tinha qualquer meio para coordenar as informações que vinham do mundo." Roosevelt instituiu o Escritório de Serviços Estratégicos, sob o comando do general William J. Donovan, como uma agência de espionagem dos EUA em tempo de guerra. Mas o OSS1 de Donovan nunca foi criado para durar. Quando a nova Agência Central de Inteligência surgiu de suas cinzas, Truman desejava que ela lhe servisse somente como um serviço de notícias internacionais, produzindo boletins diários. "Não havia a intenção de ser uma 'Unidade de Espionagem!'", escreveu ele. "O objetivo era ser simplesmente um centro para manter o presidente informado sobre o que acontecia no mundo." Ele insistiu que nunca quis que a CIA "agisse como uma organização de espiões. Esta nunca foi à intenção quando ela foi organizada."
Sua visão foi subvertida desde o início.
"Numa guerra global e totalitária", acreditava o general Donovan, "a inteligência precisa ser global e totalitária." Em 18 de novembro de 1944, ele escreveu ao presidente Roosevelt propondo que os Estados Unidos criassem um "Serviço Central de Inteligência" para tempos de paz. Começara a traçar seu plano no ano anterior, a pedido do tenente-general Walter Bedell Smith, chefe de gabinete do general Dwight D. Eisenhower, que queria saber como o OSS se tornaria parte do sistema militar americano. Donovan disse ao presidente que poderia descobrir "a capacidade, as intenções e as atividades de nações estrangeiras" realizando "operações subversivas no exterior" contra inimigos dos EUA. O OSS nunca tivera mais do que 13 mil membros, sendo menor que uma única divisão do exército. Mas o serviço que Donovan idealizava seria seu próprio exército, uma força com capacidade para combater o comunismo, defender os EUA de ataques e oferecer segredos à Casa Branca. Ele exortou o presidente a "lançar o barco ao mar de uma vez", e seu objetivo era ser o capitão.
Apelidado de "Wild Bill" por causa de um arremessador rápido - mas de má pontaria - que comandava o time de beisebol New York Yankees de 1915 a 1917, Donovan era um velho e bravo soldado - ganhara a Medalha de Honra do Congresso por heroísmo nas trincheiras da França durante a Primeira Guerra Mundial - mas um mau político. Pouquíssimos generais e almirantes confiavam nele. Eles ficaram horrorizados com sua idéia de criar um serviço de espionagem a partir de uma coleção dispersa de corretores de Wall Street, intelectuais da Ivy League,2 mercenários, homens de propaganda, homens da notícia, dublês, gatunos e trapaceiros.
O OSS havia desenvolvido um grupo americano único de analistas de inteligência, mas Donovan e seu funcionário de maior destaque, Allen W. Dulles, eram fascinados por espionagem e sabotagem, habilidades em que os americanos eram amadores. Donovan dependia da inteligência britânica para treinar seus homens nas artes escusas. Os homens mais corajosos do OSS, aqueles que inspiraram lendas, eram os que saltavam sobre as linhas inimigas, brandindo armas, explodindo pontes, conspirando contra os nazistas juntamente com os movimentos de resistência da França e dos Bálcãs. No último ano da guerra, com forças espalhadas por Europa, África do Norte e Ásia, Donovan quis despejar seus agentes diretamente na Alemanha. Ele o fez, e eles morreram. Das 21 equipes de dois homens que entraram no país, só se ouviu falar novamente de uma. Era com esse tipo de missão que o general Donovan sonhava diariamente - às vezes missões ousadas, às vezes equivocadas.
"Sua imaginação era ilimitada", disse seu braço direito, David K. E. Bruce, mais tarde embaixador americano na França, na Alemanha e na Inglaterra. "Idéias eram sua diversão. A excitação o fazia relinchar como um cavalo de corrida. Pobre do agente que rejeitasse um projeto que lhe parecesse ridículo, ou pelo menos incomum. Durante dolorosas semanas, sob suas ordens testei a possibilidade de usar morcegos retirados de cavernas ocidentais para destruir Tóquio" - soltando os animais no espaço com bombas incendiárias amarradas às costas. Este era o espírito do OSS.
O presidente Roosevelt sempre teve suas dúvidas em relação à Donovan. No início de 1945, ordenou a seu principal assessor militar na Casa Branca, o coronel Richard Park Jr., que fizesse uma investigação secreta sobre as operações do OSS em tempo de guerra. Quando Park deu início ao trabalho, vazamentos da Casa Branca renderam manchetes em Nova York, Chicago e Washington, advertindo que Donovan queria criar uma "Gestapo americana". Quando as histórias vieram a público, o presidente exortou Donovan a empurrar seus planos para baixo do tapete. Em 6 de março de 1945, o Estado-Maior Conjunto os engavetou formalmente.
Eles queriam um novo serviço de espionagem para servir ao Pentágono, e não ao presidente. O que tinham em mente era uma agência centralizadora formada por coronéis e burocratas, destilando informações obtidas por adidos, diplomatas e espiões, em benefício de comandantes de quatro estrelas.* Assim começou uma batalha pelo controle da inteligência americana que continuaria por três gerações.
"ALGO EXTREMAMENTE PERIGOSO"
O OSS tinha pouca autoridade na Casa Branca, e menos ainda dentro do Pentágono. A organização era impedida de ver as mais importantes comunicações interceptadas do Japão e da Alemanha. Altos oficiais militares americanos achavam que um serviço de espionagem civil independente comandado por Donovan, com acesso direto ao presidente, seria "algo extremamente perigoso numa democracia", nas palavras do major-general Clayton Bissell, principal assistente de gabinete para inteligência militar.
Muitos desses homens eram os mesmos que dormiram no ponto durante Pearl Harbor. Bem antes do amanhecer de 7 de dezembro de 1941, as forças americanas decifraram alguns códigos do Japão. Sabiam que um ataque poderia estar prestes a acontecer, mas nunca imaginaram que o Japão faria uma aposta tão desesperada. O código decifrado era secreto demais para ser compartilhado com comandantes em campo. Rivalidades dentro das forças militares significavam que as informações eram divididas, escondidas e fragmentadas. Como ninguém tinha todas as peças do quebra-cabeça, ninguém viu a imagem completa. Foi apenas depois do fim da guerra que o Congresso investigou como a nação fora apanhada de surpresa, e só então ficou claro que o país precisava de uma nova maneira de se defender.
Antes de Pearl Harbor, a inteligência americana que cobria grandes faixas do planeta podia ser encontrada numa pequena fila de armários de madeira no Departamento de Estado. Sua única fonte de informação era uma dúzia de embaixadores e adidos militares. Na primavera de 1945, os Estados Unidos sabiam praticamente nada sobre a União Soviética, e pouco mais sobre o resto do mundo.
Franklin Roosevelt era o único homem que poderia reviver o sonho de Donovan de criar um serviço de espionagem americano poderoso e capaz de enxergar longe. Quando Roosevelt morreu, em 12 de abril, Donovan se desesperou com o futuro. Depois de passar metade da noite em luto, ele desceu as escadas do Ritz Hotel, seu refúgio favorito na Paris libertada, e tomou um triste café-da-manhã com William J. Casey, oficial do OSS e futuro diretor da central de inteligência.
"O que você acha que isso significa para a organização?", perguntou Casey.
"Temo que provavelmente seja o fim", disse Donovan.
No mesmo dia, o coronel Park submeteu seu relatório ultra-secreto sobre o OSS ao novo presidente. O relatório, que só seria divulgado completamente depois do fim da guerra fria, era uma arma política assassina, amolada pelos militares e afiada por J. Edgar Hoover, diretor do FBI desde 1924; Hoover desprezava Donovan e acalentava suas próprias ambições de liderar um serviço de inteligência mundial. O trabalho de Park destruiu a possibilidade de que o OSS continuasse sendo parte do governo americano, apunhalou os mitos românticos que Donovan criara para proteger seus espiões e incutiu em Harry Truman uma profunda e permanente descrença nas operações de inteligência secretas. O OSS causara "sérios danos aos cidadãos, aos interesses comerciais e aos interesses nacionais dos Estados Unidos", dizia o relatório.
Park não relatou qualquer exemplo importante em que o OSS tivesse ajudado a vencer a guerra; apenas listou impiedosamente os casos em que ele havia falhado. O treinamento de seus agentes fora "grosseiro e frouxamente organizado". Comandantes da inteligência britânica consideravam os espiões americanos uma "massa de modelar em suas mãos". Na China, o líder nacionalista Chiang Kai-shek manipulara o OSS para seus próprios objetivos. Espiões alemães haviam penetrado em operações do OSS em toda a Europa e todo o norte da África. A embaixada japonesa em Lisboa descobriu os planos de agentes do OSS de roubar seus livros de códigos - e como conseqüência os japoneses mudaram seus códigos, o que "resultou num completo blecaute de informações militares vitais" no verão de 1943. Um dos informantes de Park disse, "Não se sabe quantas vidas americanas no Pacífico representam o custo dessa estupidez por parte do OSS". Inteligência equivocada fornecida pelo OSS depois da queda de Roma, em junho de 1944, levou milhares de soldados franceses a uma armadilha nazista na ilha de Elba, escreveu Park, e "como resultado destes erros do OSS e de seus cálculos malfeitos sobre as forças inimigas, cerca de 1.100 soldados franceses foram mortos".
O relatório atacava Donovan pessoalmente. Dizia que, num coquetel em Bucareste, o general perdera uma pasta de documentos que foi "entregue à Gestapo por uma dançarina romena". A contratação e promoção de altos oficiais por Donovan se baseavam não em mérito, mas numa rede de conexões com antigos companheiros de Wall Street e do Registro Social.3 Ele enviara destacamentos de homens a postos avançados isolados, como a Libéria, e esqueceu-os lá. Despejara comandos equivocadamente na neutra Suécia. Enviara guardas para proteger um depósito de munição alemã apreendido na França e depois o explodiu.
O coronel Park reconheceu que os homens de Donovan haviam realizado algumas bem-sucedidas missões de sabotagem e resgate de pilotos americanos derrubados. Disse que o setor de pesquisas e análises do OSS fizera "um trabalho excepcional" e concluiu que os analistas poderiam encontrar lugar no Departamento de Estado depois da guerra. Mas o resto do OSS teria que acabar. "O comprometimento quase inútil do pessoal do OSS", advertiu, "torna inconcebível seu uso como agência de inteligência secreta no mundo pós-guerra."
Depois do Dia da Vitória na Europa, Donovan voltou a Washington para tentar salvar seu serviço de espionagem. Um mês de luto pelo presidente Roosevelt começava a abrir caminho para uma louca disputa de poder em Washington. Em 14 de maio, no Salão Oval, Harry Truman ouviu por menos de quinze minutos enquanto Donovan fazia sua proposta para manter o comunismo sob controle minando o Kremlin. O presidente o dispensou sumariamente.
Durante todo o verão, Donovan reagiu lutando no Congresso e na imprensa. Finalmente, em 25 de agosto, disse a Truman que o presidente teria que escolher entre o conhecimento e a ignorância. Os Estados Unidos "não têm hoje um sistema de inteligência coordenada", advertiu. "Os defeitos e os perigos dessa situação têm sido amplamente reconhecidos."
Donovan achou que bajulando Truman, um homem que ele sempre tratara com arrogante desdém, conseguiria convencê-lo a criar a CIA. Mas interpretou equivocadamente seu próprio presidente. Truman concluíra que o plano de Donovan tinha características da Gestapo. Em 20 de setembro de 1945, seis semanas depois de lançar bombas atômicas americanas sobre o Japão, o presidente dos Estados Unidos demitiu Donovan e ordenou que o OSS fosse dissolvido em dez dias. O serviço americano de espionagem foi abolido.
Madonna, mortal
Na biografia Madonna: 50 anos, lançado na Inglaterra em 2007 e agora no Brasil, chama mais a atenção o aspecto de levar em consideração que a popstar é mortal, com todos os seus defeitos e dissabores. Mostra por exemplo como a busca por um corpo perfeito virou uma obsessão para a cantora.
Sem maquiagem...Novas biografias expõem os problemas de Madonna, como a obsessão pela ginástica e a crise no casamento
Madonna vive um momento especial. No sábado 16 ela celebra 50 anos – e poucas mulheres chegam a essa idade com sua beleza e vigor. No sábado seguinte, 23, a cantora americana dá um novo passo numa carreira que já dura 25 anos. Com 200 milhões de discos vendidos e uma fortuna de 400 milhões de dólares, Madonna poderia sossegar. Mas vai cair na estrada numa megaturnê que começa naquela data e deverá passar pelo Brasil em dezembro. Duas novas biografias reafirmam o que salta aos olhos: seu sucesso vem da determinação, da disciplina férrea e de um senso de oportunidade incrível. Mas Madonna: 50 Anos (tradução de Inês Cardoso; Nova Fronteira; 554 páginas; 59,90 reais), lançado na Inglaterra em 2007 e agora no Brasil, e Life with My Sister Madonna (A Vida com Minha Irmã Madonna), recém-publicado nos Estados Unidos, chamam mais atenção por outro aspecto: eles lançam luz sobre a Madonna mortal, com todos os seus defeitos e dissabores. No primeiro, a jornalista Lucy O’Brien mostra como a busca da cantora por um corpo livre de gordura se tornou uma fixação que vai além do bom senso. E expõe sua solidão. "Madonna está condenada a dois tipos de companhia: os acólitos e as pessoas que se sentem esmagadas por seu ego", disse ela a VEJA. No último caso inclui-se o marido, Guy Ritchie. E também o irmão mais novo, Christopher Ciccone – que, no segundo livro, faz um relato nada fraternal de sua relação com ela.
Como aponta Lucy O’Brien, Madonna sempre usou o trabalho e a atividade física como válvulas de escape. Ela faz ao menos três horas de exercício por dia, e não relaxa. Tempos atrás, em temporada de férias numa ilha no Oceano Índico, passava os dias malhando na academia, enquanto o marido e os três filhos curtiam a praia. Em flagrante recente, uma Madonna de camiseta e sem maquiagem exibia uma magreza etíope. A biógrafa mostra os efeitos desse exagero. Pouco antes de adotar um bebê africano, em 2006, a cantora se desesperou por não conseguir engravidar. Sua fertilidade foi comprometida pelo excesso de ginástica.
A vida afetiva é outro carma. Não é de hoje que Madonna e Guy Ritchie emitem sinais de que o casamento vai mal. Dez anos mais velha que o marido, ela já confidenciou a amigos que se sente insegura quanto a seu poder de atração. Ritchie, por sua vez, não suporta o papel de coadjuvante da esposa. Em nome dos filhos, os dois já tentaram até a terapia de casais (aparentemente, a única coisa que ainda os une é o culto à cabala). Christopher Ciccone tem sua parte nas dificuldades do casal. O encontro do machão Ritchie com o cunhado gay foi um caso de ódio à primeira vista. Ciccone sempre viveu à sombra da irmã, mas foi expulso de seu convívio por causa das rusgas com Ritchie e do vício em cocaína. O troco do mano veio na forma da biografia. Ele posa de vítima e traz à tona toda sorte de ressentimento – mas é inegável que seja um observador com conhecimento de causa. A Madonna que sai de seu relato é controladora. Uma criatura que o irmão não se cansa de chamar de "mandona".
Trecho de Madonna: 50 anos, de Lucy O´Brien
“O visual para a turnê Blond Ambition não dava descanso a Madonna”. Segundo seu preparador físico na Inglaterra, Jamie Addicoat, para que atingisse uma forma física improvável como aquela, a rotina de exercícios tivera que se tornar insana.
— Madonna estava a ponto de queimar completamente todas as gorduras do corpo — disse ele. — Ela fazia cinco horas de treinamento físico por dia (duas horas de corrida, uma na academia e duas no palco), o que é mais do que a maioria dos atletas profissionais faz. A situação chegou ao ponto de o percentual de gordura de seu corpo cair a um nível muito abaixo do considerado saudável para uma mulher.
Para Madonna, esse era um preço pequeno a pagar por um espetáculo que ela controlava do início ao fim. A concepção de Blond Ambition era inteiramente dela.
— Muitos meses antes da turnê, ela me mostrou um bloco cheio de anotações e desenhos que ela mesma fizera. Madonna concebera tudo sozinha — lembra o diretor de iluminação Peter Morse. — O show era uma versão ao vivo do que estava no bloco de anotações. — Ele admite que foi um desafio: — As cenas mudavam de maneira inacreditável de um cenário para outro. De uma cidade que gira em torno de uma fábrica para uma escadaria bela e enorme; depois surgiam pilastras de verdade, como as de uma catedral. Nada no show era usado duas vezes. Foi um desafio criar um sistema de iluminação que desse conta de tudo aquilo.
Extravagância como essa é algo habitual hoje em dia, mas em 1990, nada parecido tinha sido feito num show de música pop.
— Essa foi uma grande mudança para o público de shows em geral. Ela criou um caminho e uma direção que nunca haviam sido percorridos antes — diz Morse. A jornada das trevas em direção à luz trilhada por Madonna estreou no estádio de Makuhari, no Japão, em abril daquele ano. “Desde o início, as pessoas se mostravam curiosas.”
“As cenas de sexo e de religião eram tão fortes que quando a turnê chegou a Toronto, a polícia local ameaçou prender Madonna por obscenidade se ela mantivesse aquelas cenas no show. Em resposta, ela apimentou ainda mais a seqüência da masturbação. Depois de tanto tumulto, a Polícia Montada canadense manteve certa distância e o show aconteceu sem qualquer transtorno. Na Itália, Madonna também enfrentou resistência. Grupos católicos incentivaram um boicote ao show. Eles foram bem eficientes, pois a Itália foi o único país em que os ingressos para Blond Ambition não se esgotaram.”
O governo do império
O livro do historiador russo Dmitri Volkogonov— Os Sete Chefes do Império Soviético –analisa a trajetória dos homens que comandaram a União Soviética, desde a Revolução de 1917: Vladimir Lenin, Josef Stalin, Nikita Kruchev, Leonid Brejnev, Iuri Andropov, Konstantin Chernenko e Mikhail Gorbachev
A liderança da mentira...Um perfil sem ilusões dos sete chefões da União Soviética – escrito por um militar que serviu a quatro deles
Durante décadas, o militar e historiador russo Dmitri Volkogonov – a exemplo dos militantes comunistas de todo o mundo – acreditou na maior falácia do século XX: a integridade do sistema político vigente na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Em 1995, poucos meses antes de morrer, aos 67 anos, vítima de câncer, ele disse em uma entrevista ao jornal The New York Times que a única coisa da qual se orgulhava na vida era ter sido capaz de alterar seus pontos de vista em relação ao regime a que fora fiel por tanto tempo. Seu derradeiro livro, Os Sete Chefes do Império Soviético (tradução de Joubert de Oliveira Brízida; Nova Fronteira; 514 páginas; 79,90 reais), publicado postumamente, resume com clareza as razões para tal mudança, a partir da análise da trajetória dos homens que comandaram aquela gigantesca e desaparecida potência, de suas origens, na Revolução de 1917, até sua extinção, em 1991: Vladimir Lenin, Josef Stalin, Nikita Kruchev, Leonid Brejnev, Iuri Andropov, Konstantin Chernenko e Mikhail Gorbachev. Não é uma reflexão qualquer, feita em gabinetes acadêmicos: como coronel-general, o autor trabalhou para os quatro últimos líderes da União Soviética. A linha mestra que costura a obra é a idéia de que o pior da experiência soviética já se encontrava no leninismo. Os capítulos referentes a cada chefe, dispostos em ordem cronológica, funcionam como ensaios independentes, porém, olhados em conjunto, não deixam dúvidas sobre a tese central: "Tratava-se de um sistema que incorporava a própria personalidade de Lenin". Stalin – que comandou a União Soviética com mão de aço entre 1924 e 1953, promovendo a morte de possivelmente 20 milhões de pessoas – não seria, portanto, um detrator do "pai da pátria", mas sim um aplicado continuador de seu pensamento.
Pesquisador que ajudou a trazer a público os arquivos secretos da KGB, Volkogonov produziu um livro bem documentado, que ilumina aspectos controversos da história soviética. Examina, por exemplo, as hesitações da política de abertura prometida por Gorbachev. O último chefão soviético nunca levantou a censura a Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenitsin, escritor dissidente morto neste mês. Condenava, assim, um livro que nunca lera. Os Sete Chefes também sublinha traços inusitados da personalidade dos comandantes comunistas – alguns, de um ridículo absoluto, como a obsessão de Brejnev por medalhas, o que levava seus asseclas a inventar condecorações absurdas. As impressões telegráficas que Brejnev deixou sobre um encontro de líderes dos partidos comunistas de todo o mundo, em 1966, guardam uma nota interessante para os brasileiros: o discurso de Luís Carlos Prestes é considerado "OK, mas chato".
Também autor de uma biografia de Stalin já publicada no Brasil, Volkogonov conclui que o inevitável colapso da União Soviética se deveu sobretudo à pretensão de onisciência, onipotência e onipresença do Partido Comunista. Assim, quando Mikhail Gorbachev surgiu no posto mais alto do Kremlin falando em "socialismo de face humana" e repetindo, como mantras, as palavras glasnost (transparência) e perestroika (reestruturação), estava claro que buscava conciliar propostas inconciliáveis: a expressão da liberdade dentro de um sistema totalitário. Não podia dar certo – e o sistema ruiu.
Trecho de Os Sete Chefes do Império Soviético, de Dmitri Volkogonov
Arauto do colapso
Em 2 de novembro de 1977, uma sessão solene do Comitê Central, do Soviet Supremo da URSS e do Soviet Supremo da Rússia teve lugar no Palácio dos Congressos do Kremlin para comemorar o sexagésimo aniversário da Revolução de Outubro. Brejnev havia dito aos seus preparadores de discursos, uma ou duas semanas antes, que não queria falar por mais de cinqüenta minutos. Passara a ter aversão por textos longos.
O pronunciamento, que foi revisto diversas vezes no Politburo, era totalmente devotado ao futuro e recebeu o título de “O Grande Outubro e o Progresso da Humanidade.” “Esta época,” proclamou Brejnev em meio a aplausos orquestrados, “é a época da transição para o socialismo e o comunismo (…) e toda a humanidade está destinada a trilhar tal caminho.”
Brejnev ainda retinha pontos de vista inspirados pelo Komintern sobre o futuro do comunismo. Nos “seus” XXIII e XXIV Congressos do partido, ele expressou a crença no triunfo final da causa de Lênin. Disse no XXIV que o sistema mundial de socialismo era “o protótipo da futura comunidade mundial de povos livres,” e que “a vitória completa da causa socialista em todo o mundo é inevitável.”
Prevendo o colapso do capitalismo e o sucesso do comunismo, Brejnev omitiu o fato de que, sem os capitalistas, a URSS não poderia sobreviver. Cerca de dois meses antes de seu profético discurso no Kremlin, em 30 de agosto de 1977, ele aprovara um relatório rotulado como “De especial importância” e “Para arquivo especial,” assinado pelos gerentes econômicos e financeiros mais credenciados do país. Se tivesse deixado transparecer o que constava daquele relatório, seu discurso no Kremlin teria virado pó. Desde os dias de Lênin, os bolcheviques haviam se tornado mestres na contabilidade de dupla entrada, uma para eles mesmos e outra para “as grandes massas operárias.” Kosygin e os outros autores haviam escrito:
“Em 18 de junho de 1977, o CC e o Soviet de Ministros tomaram a decisão de comprar no exterior 11,5 toneladas de cereais para entrega à URSS em 1977/78.” Agora, continuaram, “surgiu urgente necessidade de comprar no exterior com moeda conversível mais dez milhões de toneladas de grãos (trigo, milho, cevada) para entrega à URSS em 1978. A compra adicional de grãos permitirá atender a demanda na economia nacional, se bem que não completamente.”
Já acostumados com as carências dos recursos nacionais, os autores do relatório levavam em conta uma série de outros fatores: supunha-se que as safras seriam fracas entre os amigos da URSS, e que Polônia, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental e China estavam também se preparando para comprar cereais aos capitalistas. A idéia não era tanto aumentar a produtividade dos campos soviéticos, mas fazer estoques com os grãos estrangeiros ao custo de centenas e milhares de toneladas do ouro.
Talvez Brejnev tivesse isso na cabeça quando declarou no seu discurso que “nossa orientação não é só para as necessidades correntes, mas também para o futuro, notavelmente para nossa política agrícola. Esforçamo-nos por uma solução para o problema dos alimentos, a fim de satisfazer a demanda crescente do país.” Declamando frases tão grandiosas, ele não poderia saber, tampouco o país, que era o arauto de mudanças fundamentais. Quanto mais falava em “sucesso do socialismo” e “influência decisiva da comunidade socialista no desenvolvimento da civilização,” mais evidente se tornava a aproximação da crise total no sistema.
A rigor, a malfadada estagnação não era culpa apenas do incompetente secretário-geral. O sistema em si estava rachando, embora ainda imperceptivelmente. Não possuía suficientes reservas internas para funcionamento apropriado. Havia exaurido a si mesmo. Na década entre os eventos de Praga em 1968 e a entrada no Afeganistão, a União Soviética pareceu desfrutar de um período de calma. As anomalias se tornaram regra: as pessoas trabalhavam menos, mas recebiam bônus substanciais; cientistas, desportistas, artistas e membros de delegações desertavam em grandes quantidades; secretários regionais do partido se assemelhavam mais a barões locais; o complexo industrial-militar fazia cada vez maiores exigências para manter a “paridade” com os EUA; o povo se acostumava a dizer uma coisa e pensar outra; Brejnev proclamava que “o futuro pertence ao comunismo,” enquanto seus camaradas e assistentes enviavam ouro para os Estados Unidos, o Canadá, a Argentina e a outros países em troca de cereais, carne e outros alimentos.
O problema de vestir e alimentar a população pendia como uma maldição sobre o regime comunista desde sua concepção, e uma solução não ficara mais próxima no governo de Brejnev. Ele convocou quatro congressos como secretário-geral, do XXIII ao XXVI, e em todos, depois da ritualística descrição das conquistas históricas do socialismo, falou sobre deficiências crônicas. No XXIII: “A produção de certos bens não acompanha a demanda. Não está disponível uma variedade de carnes em local algum da rede comercial. O mercado não recebe quantidades suficientes de bens necessários.” No congresso seguinte, falou pouco sobre os bens cujo suprimento estava muito em falta, e no outro, admitiu que não fora possível alcançar uma melhora na quantidade e na qualidade dos bens e serviços. No seu último congresso, o XXVI, lendo com extrema dificuldade o texto, repetiu: “De ano para ano, os planos não se cumprem para a produção de muitos bens de consumo, especialmente tecidos, roupas de lã, calçados de couro, mobília, televisores. Não houve aprimoramento na qualidade.”
Razões foram apresentadas para os fracassos: safras ruins, mau planejamento, negligência, “subjetivismo” dos chefes anteriores e, é claro, “as ações agressivas dos imperialistas nos EUA que nos forçaram, nos anos recentes, a desviar recursos adicionais significativos para fortalecer a capacidade defensiva do país.” Entre os sucessos do regime, todavia, o XXIV Congresso ouviu que “no período 1969-70, as obras e livros de Lênin excederam 76 milhões de cópias.”
Dois meses antes de morrer, Brejnev voltou de férias na Criméia para presidir uma sessão rotineira do Politburo, algo que fazia cada vez menos em virtude da doença. O aparato do Comitê Central de há muito se conscientizara de que o estado não caminhava para lugar algum, já que sinais partiam de todos os lados indicando crise total. Os auxiliares de Brejnev tentaram colocar pelo menos algumas idéias críticas e construtivas em sua boca.
Sem tirar os olhos do texto que tinha diante de si, Brejnev descreveu seus encontros tradicionais com chefes dos partidos “fraternais” de outros países socialistas. “É desagradável, mas é um fato,” leu, “que diversos de nossos ministros venham sofrendo da doença crônica do não-cumprimento dos contratos de bens com os países socialistas.” Tomou um gole do copo de chá. “Não posso deixar de dizer que existe marcante crescimento da insatisfação com o Comecon [o Conselho de Cooperação Econômica] entre nossos amigos. Também estamos experimentando isso. A raiz do problema está no fato de que o tempo sobrepujou os modelos criados há trinta anos quando a organização foi fundada. (…) Nossos aliados tentam melhorar a coordenação das decisões gerenciais recorrendo a alavancas e estímulos econômicos, e rejeitam a extrema centralização de chefia.”
Essa era a verdade que nosso secretário-geral não estava acostumado a declarar. Mas palavras eram uma coisa; atos, outra bem diferente.
“Nossa economia é gigantesca,” continuou Brejnev. “Tome-se qualquer ministério – é quase do tamanho de um exército. O aparato do governo proliferou. Fizemos muitos erros de cálculo e incorremos em todas as espécies de mal-entendidos.” Para uma solução desses problemas, Brejnev apelou para a velha e fiel fixação bolchevique: “Talvez nosso problema-chave de hoje seja apertar a disciplina. Tanto no estado como entre os trabalhadores. (…) O rigor com a disciplina tem que ter forma abarcante, não por campanhas [individuais]. É provável que tenhamos que formular um decreto sobre isso.”
Tudo aquilo que parecia indício de uma análise sóbria no início do discurso acabou escorrendo entre os dedos da chefia.
A opinião mais penetrante sobre a crise iminente foi dada pelo chefe da KGB, Yuri Andropov. Os arquivos do Comitê Central guardam em “Pastas Especiais” diversos memorandos de Andropov chamando a atenção de Brejnev para os dias difíceis que estavam por vir. O Secretário-Geral apunha sua assinatura e os documentos eram lacrados em envelopes especiais que só ele tinha autoridade para abrir. Não há sinal de reação a tais alertas que começaram por volta de 1975. Brejnev pode ter se reunido com Andropov, há quem muito apreciava, para debater suas idéias e ter decidido que não era necessário fazer comentários escritos sobre a situação. Mas isso é só conjetura. De qualquer maneira, Andropov complementava seus bem-informados alertas com nada mais construtivo que sugestões sobre medidas adicionais rigorosas nos campos da administração e da organização.
Como um dos mais inteligentes e perspicazes chefes do partido, Andropov gozava de uma relação de confiança com Brejnev que chegava à confidencialidade. Possivelmente só Chernenko, o cortesão típico que se antecipava aos desejos do mestre, fosse mais próximo. Em 8 de janeiro de 1976, Andropov escreveu uma carta estritamente pessoal com não menos que dezoito páginas para Brejnev. Começou assim: “Este documento, que eu mesmo escrevo, é endereçado apenas a você. Se você encontrar nele alguma coisa de valor para a causa, ficarei muito feliz, caso contrário, peço-lhe então considerar que ele jamais foi escrito.”
A despeito do aspecto sigiloso do intróito, Andropov nada propôs além do fortalecimento rotineiro do papel do partido para a solução dos problemas do país. O partido, escreveu, precisava armar-se com princípios leninistas testados: unidade de doutrina partidária, organização rigorosa e disciplina de ferro. Ponderou sobre como fazer os quinze milhões de membros do partido trabalharem, “cada um deles,” e como garantir que a filiação não fosse usada “como trampolim para subida nos degraus da carreira.” Instou pelo fim do “palavrório irresponsável, da crítica destrutiva e do desperdício,” realçou o perigo que via no trabalho dos partidos comunistas da Europa Ocidental e detectou “a nódoa democrático-social contra a qual V.I. Lênin lutara tão apaixonada e furiosamente.”
Em diversas passagens, Andropov referiu-se a Khruschev de forma depreciativa, na verdade condenando-o pela transferência de especialistas em agricultura e industriais por profissão para o trabalho no partido, quando o necessário era “liderança política.” Khruschev, segundo Andropov, era contra os “gerentes de negócios” ou “homens de negócios” que, em suas palavras, “começavam qualquer tipo de conversa rabiscando números no papel. Em que, pergunta-se, um líder desses difere, por exemplo, de um gerente americano para o qual o negócio é antes de tudo contabilidade e dinheiro enquanto as pessoas vêm em segundo plano. Nas nossas condições, esses ‘homens de negócios’ estariam trabalhando para eles mesmos.” Andropov concluiu propondo que os secretários regionais do partido fossem transferidos depois de alguns anos para atividade diferente, de modo a se evitar a “estagnação.”
Tais idéias só serviam para empurrar o já conservador Brejnev na direção de um modo de pensar bolchevique ainda mais ortodoxo. Andropov e outros como ele podiam ver e sentir o aprofundamento da crise, mas só conseguiam sugerir soluções leninistas ultrapassadas e desacreditadas.
No final da era Brejnev, diversos de seus associados enxergaram a necessidade de mudanças. Mesmo assim, até o inteligente Andropov viu salvação em ressuscitar, “dentro de limites razoáveis”,as antigas práticas bolcheviques de administrar o país. Ele revelou sua nostalgia em relação aos velhos métodos ao se referir ao partido por sua denominação original de bolchevique. Na sua opinião, bolchevismo significava luta implacável contra “oportunismo político, acomodação, afrouxamento e mentalidade confusa.”
O regime conseguiu retardar o colapso por meio do desperdício sistemático e da liquidação de quantidades colossais de gás, petróleo, ouro e outros recursos naturais do país, mas isso não podia continuar indefinidamente. Eram essenciais decisões responsáveis para alteração de fundo. A chefia do partido, contudo, no demonstrava a menor disposição para tomar tais decisões. Os registros do Politburo não contêm uma só palavra de crítica ao Secretário-Geral por suas inatividade e incapacidade. Cada membro só se preocupava com seu bem-estar, e não com o do estado e do povo.
As reflexões de V.I. Boldin, membro antigo do Comitê Central, merecem ser citadas por serem relativamente objetivas: “É verdade, Brejnev tinha seus pontos fracos, e havia coisas surpreendentes e outras detestáveis. Por que, então, todos silenciaram, jubilosos e reverentes? Onde estavam os chefes cujo dever era falar a verdade sobre a situação tanto para o chefe decrépito como para o Comitê Central e para o povo? Não foi esse bando de covardes, que detinha o poder no centro e nas localidades, que levou nosso país ao impasse, e não deveriam eles ser responsabilizados pelo que aconteceu com nosso grande poder? Só com Brejnev morto é que todos começaram a ultrajar seu ídolo, tentando mostrar como eram corajosos. Que grande carência de princípios e pobreza de espírito eles deviam ter para permanecerem calados e esconderem a verdade do povo!”
Boldin estava certo, mas a culpa não era dos velhos, e sim defeito orgânico do sistema. No cume da pirâmide esteve sempre à imagem do primeiro chefe, imune à crítica e à reprovação. Outros chefes foram expostos ao ridículo depois de mortos, mas Lênin foi tão necessário morto aos seus sucessores quanto o fora vivo. Nem Gorbachev fugiu à tradição. Num pleno do partido de 21 de outubro de 1987, o último secretário-geral não perdeu a oportunidade de alfinetar Brejnev: “Provei do estilo de trabalho de Leonid Ilyich Brejnev em seus últimos estágios. Sei de tudo, camaradas. Foi o infortúnio de nosso partido.” “Sabia de tudo,” mas demorou bastante antes de dizer alguma coisa sobre aquilo.
De fato, a partir de meados dos anos 1970, Brejnev passou a não tomar parte ativa seja nas questões do partido seja nas do estado, mas ainda queria aparecer todos os dias nas telas da televisão. O resultado foi que todos, no país e no exterior, podiam acompanhar seu lento declínio, o esforço que fazia até para descer uma escada ou levantar o pesado volume em Viena que continha o Tratado SALT– 2. De há muito sabia-se em Moscou que, na retaguarda da coluna de limusines pretas que acompanhavam Brejnev em suas cada vez mais raras visitas à capital, ia um carro com equipamento ressuscitador. O Comitê Central mandou que uma equipe de médicos pessoais altamente qualificados estivesse sempre próxima do local aonde o chefe fosse.
Mesmo assim, Brejnev continuava se considerando indispensável devido a sua “grande experiência e sabedoria.” Não percebia que um sábio, com entendimento do passado e antevisão do futuro, não se vê como centro da existência, e sim tem uma idéia objetiva a respeito de si mesmo. Mas Brejnev não possuía tal capacidade. O andar arrastado, o discurso desconexo, os movimentos desgraciosos e a total inaptidão para entender qualquer coisa tornaram-se objeto de piedade nacional e motivo de anedotas cruéis.
Em 1982, ano de sua morte, Brejnev conseguiu fazer ainda algumas viagens pelo país. Quando passava sob uma plataforma, durante visita a uma fábrica de aviões em Tashkent, em março, a estrutura desabou sob o peso dos trabalhadores que estavam em cima dela. As pessoas em torno de Brejnev ainda tentaram protegê-lo das vigas que caíam, mas a clavícula do chefe resultou quebrada. Brejnev assustou-se bastante e a tensão causada em seu coração e na circulação do sangue foi considerável.
Em 28 de outubro, duas semanas antes de falecer, Brejnev ainda reuniu forças para, com grande dificuldade, “pronunciar um discurso” no Kremlin diante do Estado-Maior do Comando Supremo do Exército Soviético. E, no grande feriado do calendário bolchevique, 7 de novembro, quando a Revolução de Outubro era comemorada com a devida cerimônia, Brejnev postou-se de pé no Mauso292 léu durante todo o desfile militar e a parada cívica. Usando calçados aquecidos, roupas de baixo confeccionadas em lã e quase idênticos chapéus com pêlo de marta, os idosos chefes flanquearam Brejnev e acenaram debilmente com as mãos enluvadas para as “massas jubilosas” que se sucediam. Naquele dia, lá estavam de pé no Mausoléu o então incumbente e os três futuros secretários-gerais: Brejnev, Andropov, Chernenko e Gorbachev.
Nos seus últimos anos, uma das excentricidades de Brejnev foi sua preocupação com o peso. Começava o dia pesando-se e se enervava ao mais leve acréscimo, como se o controle do peso fosse a resposta para todas as suas enfermidades. Adorava caminhar e nadar, mas tais exercícios não impediram a rápida deterioração de sua saúde. Sofria de insônia e começou a tomar pílulas para dormir em doses crescentes, e acabou viciado. Como relembrou seu chefe da segurança, o general V. Medevedev, um dos membros do Politburo aconselhou certa vez Brejnev a tomar os remédios com zubrovka, uma vodca aromatizada. Segundo Medvedev, foi a zubrovka que agiu como narcótico. Brejnev não bebia muito daquela mistura, porém, no seu sistema depauperado, ela funcionou como depressivo. Ele já fora acometido de ataques do coração, derrames e outras doenças. Ademais, ex-fumante, Brejnev tinha verdadeira paixão pelo cheiro da fumaça do tabaco, e o general Medvedev relata que por vezes, no meio da noite, ele e seus assistentes tinham que acender cigarros e ficar “fumigando” o adoentado chefe enquanto ele permanecia deitado.
Depois do acidente em Tashkent, o estado de saúde de Brejnev rolou rapidamente ladeira abaixo. Ele ainda fazia grande esforço para aparecer em desfiles e cerimônias, mas todas as questões rotineiras foram delegadas a Chernenko.
A véspera do falecimento foi igual à maioria dos outros dias. Ele voltou de Zavidovo depois do “tiro” e foi para a cama após o jantar, embora não tivesse assistido aos últimos noticiários como normalmente fazia. Na manhã seguinte, por volta das nove horas, Medvedev e Sobachenko foram acordá-lo e o encontraram morto na cama.
Respiração artificial, equipe de ressuscitação e ajuda do acadêmico Chazov não adiantaram. O primeiro membro do Politburo a ter notícia do fato e também o primeiro a chegar foi, é claro, Andropov. Medvedev lembrou-se de que, depois de relatar a Andropov o que acontecera, o chefe da KGB permaneceu perfeitamente calmo e fez “perguntas desnecessárias e desagradáveis.” A morte de Brejnev não foi surpresa para ninguém.
O país estava praticamente parado, pois a estagnação asfixiara todas as esferas da vida. No último Congresso do partido de seu período de governo, o XXVI de 1981, Brejnev começou seu discurso com as seguintes palavras: “Camaradas! O novo Comitê Central nomeado pelo Congresso acaba de reunir-se em seu primeiro pleno. Permitam-me relatar seus resultados. No primeiro pleno do Comitê Central, que transcorreu numa atmosfera de excepcional unidade e solidariedade, os órgãos diretores de nosso partido foram eleitos por unanimidade. O pleno indicou, também por unanimidade, como secretário-geral do Comitê Central do PCUS, o Camarada L.I. Brejnev.”
Naturalmente, todos se ergueram para a tradicional “tempestade de aplausos.” Brejnev evidentemente não sentiu o menor desconforto pelo fato de, a despeito de se encontrar impotente por inteiro, ainda ocupar o cargo mais elevado do país, e fez questão de anunciá-lo pessoalmente aos delegados. Os valores morais mais elementares tinham sido totalmente desprezados. Brejnev e os outros chefes senis ao seu lado haviam se transformado em símbolos da decadência, declínio e erosão do sistema.
Dezoito meses mais tarde, ele estava morto. Enquanto muitos no país saudaram a notícia com alívio, os idosos do Politburo ficaram alarmados. A pergunta que não saía de suas cabeça era: quem assumiria o primeiro lugar dentre eles? O lobby industrial-militar também estava inquieto, já que fora o favorito de Brejnev. No país todo, alguns ousaram especular se alguma coisa positiva poderia agora começar a emergir. A nação entrou em longo período de luto. Parecia que o próprio fundador do sistema estava sendo enterrado, não apenas seu quarto chefe.
Uma sessão especial do Politburo foi convocada no dia em que Brejnev faleceu, na qual choveram os elogios usuais, rebaixando ainda mais o vocabulário da louvação: ele foi “um homem da maior autoridade (…) simplicidade encantadora (…) talento excepcional e chefe extraordinário.” Brejnev morreu na manhã de 10 de novembro, porém, na melhor tradição bolchevique, foi decidido “escurecer a foto” anunciando-se que fora no dia 11 as 11 horas da manhã. O luto oficial duraria três dias, de 12 a 15 de novembro. As escolas não tiveram aulas no dia do enterro, houve salvas de canhão, sirenes soaram por cinco minutos, e assim por diante.
Por uma ou duas semanas, o povo ainda falou de Brejnev por puro hábito, e então o chefe desapareceu de sua vida, sem amarguras ou tristezas. Para falar a verdade, o Politburo debateu, uma semana após a morte, a respeito de um item especial da agenda: “Sobre a Imortalização da Memória de L.I. Brejnev.” Diante deles, havia uma resolução preparada. O primeiro a falar foi, é óbvio, o novo secretário-geral. Andropov fora “eleito,” por indicação de Chernenko, umas dez horas depois do falecimento de Brejnev:
Andropov: Tenho alguma dúvida em redenominar à cidade de Zaporozhie [Ucrânia] para Brejnev. Por quê? Primeiro, porque seria desejável dar o nome de Brejnev a uma cidade na [República Federativa Russa]. Segundo, do ponto de vista histórico, Zaporozhie não é particularmente adequada. É associada com Zaporozhian Sech [Hoste Cossaca], com os distúrbios cossacos etc. Talvez fosse melhor darmos o nome de Brejnev à cidade de Naberezhnye Chelny. Não que eu pense em dar o nome de Leonid Ilyich à estação de lançamento espacial. Não devemos associar o nome de Brejnev a foguetes, e a estação significa exatamente isso. A mim parece que o melhor é dar o nome de Leonid Ilyich à Cidade Estrela no distrito Shchelkovsk da região de Moscou.
Tikhonov: Apóio as sugestões do Camarada Andropov, e também acho que seria certo dar o nome de Leonid Ilyich, por exemplo, à Usina Hidrelétrica de Nurek [no Tadjiquistão]. Talvez devêssemos igualmente dar o nome de Brejnev à mina de carvão de Raspad no oblast de Kemerovo?
Andropov: Houve recentemente um grande acidente em Raspad, muitas pessoas morreram. Talvez não devêssemos incluir o local na lista.
Tikhonov: Está bem. Talvez possamos dar o nome de Leonid Ilyich ao quebra-gelo Arktika.
Andropov: Concordo.
Tikhonov: E dar o nome de Leonid Ilyich à Siderúrgica de Oskol. (…) E, ao renomearmos praças, devemos incluir a cidade de Kiev.
Ustinov: Poderíamos também dar o nome de Brejnev para um transatlântico de passageiros e, enquanto se espera, o nome poderia ir para uma embarcação fluvial.
O Santo Sujo
O Santo Sujo é uma saborosa reconstituição da vida de Jayme Ovalle realizada pelo jornalista mineiro Humberto Werneck. A riqueza do personagem encontra-se exatamente na desproporção entre sua obra discreta (33 músicas) e o impacto indelével que imprimiu sobre várias gerações de músicos, artistas, escritores do modernismo brasileiro.
A mais silenciosa presença...A vida de Jayme Ovalle, músico e poeta que deixou uma obra minúscula – nunca publicou um livro – mas marcou várias gerações da cultura brasileira
O BOÊMIO INOCENTE...Ovalle no Carnaval, nos anos 20, e em sua casa, no fim da vida: ele bebia litros de uísque, se encantava com moços travestidos e chorava como criança quando discutia com os amigos
Jayme Ovalle foi poeta, mas nunca publicou um livro. Compositor, deixou uma obra enxuta, com apenas 33 músicas, número que ele dizia ser perfeito – era a idade de Jesus. Também foi um místico cristão, com eventuais incursões pela umbanda, mas não fez escola como guru ou teólogo. Com realizações tão limitadas, esse aplicado funcionário dos serviços de alfândega do Rio de Janeiro não pareceria uma figura merecedora de uma biografia. No entanto, está aí O Santo Sujo (Cosac Naify; 400 páginas; 55 reais), saborosa reconstituição da vida de Ovalle realizada pelo jornalista mineiro Humberto Werneck. A riqueza do personagem encontra-se exatamente na desproporção entre sua obra discreta e o impacto indelével que ele imprimiu sobre várias gerações de músicos, artistas, escritores do modernismo brasileiro – gente como Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Vinicius de Moraes e Fernando Sabino.
Nascido em Belém, no Pará, em 1894, e radicado no Rio na adolescência, Jayme Ovalle logo se firmou como uma "presença silenciosa" da cultura brasileira, na expressão do cronista Otto Lara Resende. Nunca freqüentou faculdade nem estudou música a fundo. Lia jornais, mas não era lá muito amigo dos livros. Era um grande intuitivo. Compôs belas músicas que, como a singela Azulão (com letra de Manuel Bandeira), incorporavam formas populares sem incorrer em nenhum populismo. Também redigiu, com ajuda de uma amiga inglesa e de sua mulher, a escritora americana Virginia Peckham, uma série de poemas em inglês, língua que não dominava, apesar de ter vivido anos em Londres e Nova York. Mas sua lenda vai além dessas poucas canções e poemas. Com suas inúmeras esquisitices, Ovalle era ele mesmo sua maior obra.
Werneck cotejou documentos e depoimentos diversos para depurar exageros e invenções que fizeram o folclore de Ovalle. Mesmo assim, a coleção de excentricidades parece inesgotável. O músico paraense era uma combinação improvável de extravagância e timidez. Foi um boêmio inveterado, que consumia litros de uísque e se encantava platonicamente com moços travestidos nos bailes de Carnaval. Nos anos 20, quando morou ao lado de pensões mal-afamadas na Lapa, recebia prostitutas em sua casa – mas nunca se valeu dos serviços das moças. Desembarcou em Londres, em 1933, com um macaco no ombro. Fantasiava improváveis ancestrais judaicos, e várias testemunhas dizem tê-lo visto esbofetear o próprio rosto, em transe, dizendo "apanha, judeu!". Apaixonou-se por um manequim de vitrine e por uma pomba. Nas conversas sobre temas candentes, às vezes se botava a chorar como criança na tentativa de demover um amigo de um ponto de vista que considerasse equivocado. Usava um desconfortável e anacrônico monóculo.
É claro que Ovalle não exerceu tamanha influência apenas por suas bizarrias. Ele também foi, digamos, um pensador popular. Não tinha nenhum rigor filosófico, mas era uma usina de tiradas magníficas e achados originais. Criou, com o poeta Augusto Frederico Schmidt, uma esdrúxula divisão da humanidade em cinco categorias, chamada de Nova Gnomonia – boutade de mesa de bar que gerou discussões seriíssimas nos meios intelectuais nos anos 30 e 40. Mas a melhor amostra de sua verve talvez esteja na entrevista que concedeu a Vinicius de Moraes e Otto Lara Resende, em 1953, dois anos antes de sua morte por infarto. Ovalle pratica ali toda a sua absurda metafísica, em definições como "o suicídio é a publicidade do desespero" ou "o hipopótamo é um rascunho de Deus".
No tempo de Ovalle, os meios que ditavam a cultura eram bem mais restritos, dominados por uns poucos medalhões como Bandeira e Mário de Andrade. No Brasil contemporâneo, menos provinciano, talvez Ovalle tivesse dificuldade para alcançar sua imensa fama – e, de fato, hoje não se conhece figura equivalente ao autor de Azulão. Não deixa de ser uma pena. Diletantes de gênio como Ovalle podem não deixar grande obra – mas certamente dão mais graça à vida cultural.
Trecho de O Santo Sujo, de Humberto Werneck
Otto Lara Resende, que foi seu amigo, não abusa da retórica ao falar de Jayme Ovalle como “um largo estuário mágico”. Pois nele, de fato, muitos, as figuras mais díspares, de mais de uma geração, foram se encontrar. Foi Ovalle, diz Otto, uma “silenciosa presença” que, “sem querer marcar, marcou todo mundo que passou por ele”, deixando “por toda parte, ao léu, suas impressões dígito-espirituais, espirituosas”.
Vinicius de Moraes, por exemplo, diz o escritor mineiro, “com todos os seus ovallianos diminutivos”, deve ser visto como “um viril expoente” do “carinho antimachista” de que Jayme Ovalle seria o “patriarca”. A uni-los, acrescenta, uma ausência de vergonha “do que é ser bom, frágil e humano, também feminino”.
Muito antes, porém, do “poetinha” – que um dia, para justificar atraso num compromisso, explicou a Paulo Mendes Campos que em sua casa tinha entrado “um ladrãozinho” –, houve Manuel Bandeira, o mais próximo e querido dos amigos de Ovalle. Também ele sucumbiu ao mel dos diminutivos de seu “irmãozinho” – e invocou, no poema em prosa “Conto cruel”, que incluiria em Estrela da manhã, de 1936: “Meu Jesus-Cristinho!”. Adorava os inhos e inhas em que Ovalle se derretia. Não deixaria passar sem registro, entre outras pérolas, a resposta que o companheiro deu a alguém que o criticara por estar usando luto:
– Deixa eu usar o meu lutinho!
Difícil precisar quando foi que os dois se conheceram, mas seguramente o engate já se dera em 1922, pois Bandeira data desse ano “sua amizade, de contato quase diário”, com amigos que foi fazendo, “em cadeia”, a partir de Ribeiro Couto (que em sua porta fora bater, recém-chegado de São Paulo, em dezembro de 1918): Jayme Ovalle, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Dante Milano, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais, neto, Osvaldo Costa. Menos conhecido que os demais, este último, nascido no Pará, era jornalista e no final da década participou da fase mais radical – a chamada “segunda dentição” – da Revista de Antropofagia, de Oswald de Andrade, onde escreveu, como “Tamandaré”, corrosivas críticas a antigos companheiros de movimento modernista, e para a qual criou um slogan: “Quatro séculos de carne de vaca! Que horror!”.
A esse time masculino se juntou, também por essa época, a cantora Germana Bittencourt, que seria a primeira intérprete de canções de Jayme Ovalle em espetáculos públicos – em 22 de outubro de 1926, quando cantou “Zé Reymundo”, “Papai Curumiassu”, “Macumbebê” e “Caboclinho” no Cassino do Passeio Público, no Rio de Janeiro. Escrevendo sobre o recital, Manuel Bandeira fez elogios à cantora (“Mlle. Germana Bittencourt possui uma voz de timbre agradável, um temperamento muito vibrátil”), arriscou uma aposta no seu futuro (“Se ela tiver a força de se consagrar inteiramente ao estudo, há muito que esperar dos seus dotes naturais, tão ricos de promessas”) e considerou oportuno encaixar uma observação mais própria de pai do que de crítico musical:
Mas em primeiro lugar convém que se fortifique fisicamente. A sua figurinha graciosa, a que assentava bem o romantismo daquela toalete de estilo, está pedindo urgentemente dois meses de fazenda mineira com muita papa de milho verde e muito leite de vaca sã.
Boas razões tinha o poeta, ex-tísico com passagem por sanatório europeu, para fazer tal recomendação: Germana Bittencourt morrerá cedo, em 1931, de tuberculose, deixando um filho de seu casamento com o poeta argentino Pedro Juan Vignale, e sem realizar o sonho de estudar em Paris com Ninon Vallin, o amor francês de Jayme Ovalle. Mas provavelmente ainda agradecida ao compositor, pelas atenções, conselhos e carinho que lhe dera, e a quem se referira mais de uma vez nas nove cartas que enviou a Mário de Andrade. “Até hoje”, disse numa delas, “são vocês dois os homens e os amigos mais nobres e mais puros de sentimento que conheci.”
Sem prejuízo de seus “traços delicados e firmes”, Bandeira sempre tratou essa “mulher com físico de menina” como a qualquer outro rapaz de sua patota – Ovalle, Osvaldo Costa, Dante Milano –, uma vez que Germaninha, como todos a chamavam, “se deixava ficar conosco até altas horas”. Um dos redutos da “roda dos irmãozinhos”, como o grupo ficou conhecido, era o Reis, no número 18 da avenida Almirante Barroso, restaurante onde o prato de resistência consistia num famoso Bife à Moda da Casa – “uma mixórdia, que entupia”, lembra Bandeira, na qual “entrava de um tudo”. Pediam um só prato para os cinco, porém “reforçado com muito pão e muito arroz”.
O milagre da multiplicação das porções era obra de Germaninha, pois a moça “possuía o talento de organizar um menu para cinco sem exceder, duas garrafas de vinho do Rio Grande inclusive, a nota de dez mil-réis. Não sei bem como era, nunca pude saber, mas o fato é que todos saíamos bem jantados e alegres”. Teria sido Germaninha a “descobridora” da casa, freqüentada, nos primeiros tempos, por motoristas e carroceiros, e que aos poucos passara a abrigar também jornalistas, literatos e artistas com os mais variáveis talentos e saldos bancários. Não era raro ver por lá um escritor de renome internacional, o mexicano Alfonso Reyes, que foi por longos anos embaixador no Brasil. O don Alfonso que muito escreveu sobre o país e que, em sua despedida do Rio de Janeiro, na década de 30, mereceria menção de Bandeira no “Rondó dos cavalinhos”, inspirado num almoço de bota-fora no Jockey Club:
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reyes partindo,
E tanta gente ficando...
A casa onde comiam os “irmãozinhos” foi cantada em prosa por Bandeira e em verso pelo argentino Raúl González Tuñon, que com ele gastou, além de muitos mil-réis, boa parte de seus adjetivos: nuestro restaurant Reis, digno de Rabelais y de Rimbaud!
Oh restaurant Reis, grande, espeso, picante, popular, oloroso, luminoso, impúdico y sonoro!
Quando o dono do Reis se matou, Bandeira lamentou numa crônica – “Quem poderia imaginar que o simpático Américo Joaquim de Almeida acabaria bebendo formicida na Gruta da Imprensa?” – para em seguida sucumbir à nostalgia:
Bons tempos aqueles, em que Ovalle ainda tocava violão, Dantinho cantava as modinhas de Catulo, Osvaldo era alegre e loquaz, a boa Germaninha vivia...
As Horas Podres
Duas histórias paralelas se desenvolvem em As Horas Podres, novela que marcou a estréia como ficcionista de Jerônimo Teixeira, repórter de VEJA. De um lado, está um jovem que confessa ter matado o pai; de outro, o retorno de um funcionário público a sua cidade natal para o enterro da mãe. O resultado arrebata o leitor, explorando os limites do gênero.
O outro lado do balcão...Duas tramas se entrelaçam com ironia e tensão na ficção de estréia do crítico
Gênero intermediário entre o conto e o romance, a novela não tem a potência concentrada do primeiro, tampouco o vigor paciente do segundo. Na luta pela conquista do leitor, ela não consegue ganhar nem por nocaute nem por pontos – para usar uma imagem cara ao escritor argentino Julio Cortázar, quando comparava as artes do contista e do romancista. Resta-lhe a alternativa da vitória "por mérito", que o novelista pode alcançar reconhecendo e explorando os próprios limites da novela. É isso que faz com brilho Jerônimo Teixeira, repórter de VEJA, em As Horas Podres (Bertrand Brasil; 120 páginas; 25 reais), sua primeira experiência como ficcionista, lançada em 1997, que ganha agora uma nova edição.
Teixeira constrói o livro sobre duas histórias paralelas: a de um jovem que confessa ter matado o pai e a do retorno de um funcionário público e escritor inexpressivo para sua cidade natal, por ocasião do enterro da mãe. As Horas Podres segue à risca um dos preceitos clássicos da novela: é o enredo que comanda a narrativa, e não as criaturas que agem dentro dele. Isso significa que ambas as tramas avançam por meio da apresentação sucessiva e nervosa de fatos e versões – e não do mergulho no perfil psicológico dos personagens. No caso do parricídio, o assunto vem à tona por meio do diálogo entre o assassino e seu tio paterno, um advogado que o criminoso tenta convencer a defendê-lo. Não há distinção substancial entre as duas vozes e, após algum tempo, os papéis passam a se inverter, de modo a permitir a entrada em cena de novas camadas de episódios, que ajudam a elucidar os acontecimentos. Na outra vertente do livro, Teixeira transforma a sombra da influência dos grandes autores em motivo de escancarada ironia acerca do fazer literário.
De Machado de Assis a Franz Kafka, de Augusto dos Anjos a Sigmund Freud – Édipo e a fixação pela figura materna têm mais importância na novela do que aparentam à primeira vista –, as referências são, propositalmente, "muitas e variadas", o que não quer dizer que As Horas Podres constitua "um livro de crítico literário", no mau sentido do termo (vale dizer, feito para iniciados). O leitor de VEJA, familiarizado com o rigor das análises de Teixeira, mestre em letras pela PUC-RS, tem, aqui, a oportunidade de vê-lo do outro lado do balcão – e constatar que o escritor sustenta o crítico.
Trecho do livro As Horas Podres y y
– POSSO COMEÇAR?
– Começar o quê?
– A minha história. Queria que o senhor me ouvisse.
– Conheço bem a história. Estive lá. Reconheci os corpos.
– O senhor não conhece a minha história.
– Vai negar? Vai dizer que não matou?
– Não.
– Então conheço a história.
– Mas pra me defender...
– Já te disse: não posso, não vou ser teu advogado.
Estou envolvido.
– Envolvido? Envolvido como, com quem?
– Ele era meu irmão, porra!
– Ele era meu pai.
OS CAMPOS de Uruguaiana (não os conheço, nunca estive lá) mesmo há esta hora ainda guardam uma clareza que não vem da lua – pois aqui há nuvens, e também lá, suponho: é a clareza do campo aberto, onde não há o que ou onde se esconder, apenas uma obscuridade uniforme e chapada como a própria luz, lá longe aquele horizonte inabarcável que aprisionava Dyonelio Machado, e, entre nós e o horizonte, formas vagas, pontos mais escuros destacando-se da indistinção de tudo, uma árvore, um moirão carcomido, cercas farpadas, um cupinzeiro descomunal, uma pequena colina, e bois, bois, bois. Será uma noite fresca – sei que é janeiro, mas a quero assim, fresca –, um frescor que carrega para os pulmões e para a alma o cheiro imemorial do pampa. A ruminação incessante. Restos de rês carneada e mate. Decomposições vegetais. E o odor épico da bosta de vaca. O couro é matéria desmemoriada: não há resquício do pampa no fedor de curtume que empesta Estância Velha.
NÃO TÍNHAMOS, ao contrário de Augusto dos Anjos, catedrais em nosso coração: nosso vandalismo era prosaico e preciso, a pedra, o poste, a lâmina, a parábola ascendente perfeita, o barulho estimulante dos cacos chovendo sobre a rua, e a correria desabalada, nos viram desta vez, merda, nos viram. Não nos pegaram, nunca pegavam, e fazíamos de novo e não sabíamos por que mas era divertido quando não havia mais nada para balançar o tédio ou quando o cheiro forte nos açulava como feras, a raiva de perder a adolescência, a raiva de Estância Velha, a raiva burra, e não era nada, sei bem que nunca dissemos nada, não queríamos dizer nada, mas hoje eu vou fazer disso metáfora, porque o dever do escritor é este: instaurar a escuridão, a escuridão de onde viemos – becos de ratos, recessos sob pontes e viadutos, lençóis polutos, mesas de fundo na fumaça do bar, armários da infância, porões na casa da avó morta, umidade dos matos, cavernas do pensamento e musgos do útero, bueiros e bocetas –, a escuridão que somos – ladrões do fogo, homens de areia, bocas de inferno e cárie, cirurgiões de mão trêmula, torturadores compulsivos, bêbados infecciosos, judeus errantes, evangelistas da mediocridade, legisladores em causa própria, estupradores e plagiários. O mundo vive sob a brutalidade do sol. O dever do escritor é apagar lâmpadas.
A Evolução das Coisas Úteis
Professor de engenharia e história da Universidade de Duke, Henry Petroski é um dos maiores especialistas em design no mundo e tem se dedicado a entender o que transforma um objeto em um projeto de sucesso ou em um fracasso. Em A Evolução das Coisas Úteis, ele discute por que produtos aparentemente prosaicos adquiriram suas formas atuais, caso do garfo, alfinete, clipes, além da lança da Idade da Pedra e também do teclado do microcomputador.
Miudezas geniais...A história de objetos comuns mostra que a inovação nasce da permanente insatisfação com as coisas existentes
O BlackBerry equipado com Bluetooth, a câmera digital, o laptop com conexão banda larga wireless, o tocador de MP3: traquitanas eletrônicas parecem representar o ápice da tecnologia – pelo menos até ser condenadas à obsolescência por modelos mais sofisticados e compactos. Mas é saudável lembrar que a criatividade humana não nasceu com o microchip. Apetrechos bem mais simples, que nem sequer precisam de bateria para funcionar, concentram décadas, às vezes séculos, de pesquisa. A Evolução das Coisas Úteis (tradução de Carlos Irineu W. da Costa; Jorge Zahar; 308 páginas; 59 reais), do americano Henry Petroski, professor de engenharia civil da Universidade Duke, volta um olhar minucioso sobre objetos comezinhos que raramente despertam curiosidade: talheres, fitas adesivas, saca-rolhas, abridores de latas, clipes, botões. Tanto quanto a tela sem botões do iPhone ou as telas diáfanas do Windows Vista, cada uma dessas miudezas é uma pérola do design. Ao reconstituir a evolução histórica desses apetrechos simples, o autor ilumina os complicados caminhos da inovação.
Saca-rolha moderno (foto maior) e modelos antigos: o luxo é a mãe da invenção
Petroski não aceita o clichê segundo o qual a necessidade é a mãe da invenção. O homem, pondera, tem necessidade de água, mas não de cubos de gelo ou ar condicionado. "O luxo é a mãe da invenção", diz o autor. O garfo ilustra bem esse princípio. Hoje ele é um instrumento indispensável nas mesas ocidentais, mas por séculos as pessoas se contentaram em comer com as mãos, ou com duas facas, uma para cortar, outra para segurar (mal) a carne. O garfo tem vantagens evidentes sobre esse esquema laborioso. Fixa a carne com mais firmeza e a leva à boca com mais segurança. Mas ele não é exatamente uma necessidade – tanto que seu uso demorou a se propagar. A data e o local de invenção do garfo de mesa são incertos. Lá por 1100, ele começou a se popularizar na Itália. Catarina de Médici o levou para a corte francesa no século XVI. A Inglaterra foi mais tardia na sua adoção – no século XVII, muitos ingleses ainda consideravam o garfo coisa de gente esnobe.
Seguiu-se a evolução gradual do garfo de dois dentes retos para o atual modelo de quatro dentes curvos. Essas mudanças corrigiram defeitos do modelo antigo: os dois dentes retos não permitiam que o garfo transportasse pedaços pequenos de comida (como ervilhas) do prato para a boca. Petroski ensina que o inventor é, antes de tudo, um crítico. É a partir da percepção de defeitos nas coisas existentes que ele chega a um design inovador. Maços de papel presos com alfinetes ficavam frouxos e tendiam a rasgar-se, e por isso se inventou o clipe (embora os primeiros modelos também rasgassem o papel). Fechar uma bota de cano alto com botões é um processo trabalhoso e demorado? Elias Howe, o inventor da máquina de costura, pensou ter encontrado a solução em 1851, quando patenteou um fecho deslizante – mas foi só em 1913, depois de várias tentativas de outros inventores-críticos, que surgiu o zíper. Esse é um processo inesgotável, pela razão simples de que não existe invenção humana que não comporte algum defeito. E foi essa insatisfação permanente que produziu todos os modernos luxos eletrônicos.
Trecho do livro
Sempre é possível melhorar
Numa coluna intitulada “A marcha dos engenheiros”, o crítico social e humorista Russell Baker lamentava a complexidade e sofisticação do novo sistema telefônico de seu escritório. Não criticava apenas o fato de que todos precisassem freqüentar um curso de treinamento para usá-lo; em sua opinião, novos serviços, como o redirecionamento de chamadas, levavam a tecnologia longe demais — ele queria poder viajar para lugares distantes sem que as ligações telefônicas o seguissem mundo afora. Baker encerrava o artigo definindo o novo sistema telefônico como “outro triste exemplo dos horrores criados quando os engenheiros se recusam a ficar satisfeitos com o que já está bom”.
Toda mudança tecnológica tem potencial para ser adorada e odiada. O que parece ser “bom o suficiente” para um crítico pode ser deficiente para outro, e o papel dos críticos pode se reverter de acordo com as épocas e as situações, até quando se trata da mesma pessoa. No caso do redirecionamento de chamadas, por exemplo, um repórter pode achá-la uma invenção fantástica caso esteja tentando achar alguém para confirmar um detalhe num artigo cujo prazo de entrega é urgente. Russell Baker não é o único crítico da tecnologia do final do século XX que lamentou a criação de um novo sistema telefônico. Donald Norman, em seu livro O design do dia-a-dia, escreveu que “os novos sistemas telefônicos se mostraram outro excelente exemplo de design incompreensível”. De fato são confusos e cheios de botões, constituem um paradigma virtual para a investigação que Norman faz acerca das invenções modernas que “mais atrapalham que facilitam a vida”. Ele podia “apostar que encontraria o péssimo exemplo” de um novo sistema sempre que viajasse, e muitas das histórias que conta parecem verdadeiras a qualquer pessoa que tenha passado pelo trauma de se adaptar a uma nova geringonça sobre sua mesa de trabalho.
A universidade em que trabalho há pouco ganhou seu próprio e sofisticado sistema telefônico, e grande parte das minhas primeiras impressões foram similares às de Baker e Norman. Sentia-me mal por perder o conhecido instrumento com o disco numérico, sua fileira única de botões de extensão e intercomunicação cujo código eu tinha passado a compreender. Com o tempo, contudo, também me lembrei da frustração que senti ao lidar pela primeira vez com aquele tipo de telefone, e então pensei sobre algumas de suas falhas que haviam sido corrigidas pelo novo sistema. O velho telefone negro ficava conectado a dezenas de telefones similares por meio de apenas três linhas externas, e só um deles podia fazer chamadas de longa distância. Quando eu queria ligar para alguém, muitas vezes precisava esperar que um dos botões acesos se apagasse e rezar para conseguir levantar o telefone do gancho e ouvir o sinal de discagem antes de um dos meus colegas. Se errasse na discagem daqueles dígitos que pareciam infinitos, ou ouvisse o sinal de ocupado, corria o risco de perder a linha para outra pessoa. Desde que os novos telefones foram instalados, nunca precisei esperar para conseguir linha e aprendi a vantagem de recursos como a rediscagem automática, que me permite apertar um único botão para repetir uma longa seqüência de números, e o retorno automático de chamada, pelo qual, quando se aperta outro botão, meu telefone toca, assim que a linha ocupada fica livre. Quanto ao redirecionamento de chamadas, este é um recurso que meu telefone possui, mas ainda não usei para redirecionar minhas chamadas quando estou de férias na praia. Em vez disso, empreguei-o com a intenção de enviar chamadas para a secretária de nosso departamento, para que ela pudesse anotar os recados ou lidar com os problemas quando não estava disponível ou não tinha o desejo de atender ao telefone. Meu novo telefone também tem a ferramenta de mensagem de voz, que ao toque de um botão interrompe a chamada telefônica e ativa um sistema que grava as mensagens — que posso ouvir e responder de acordo com minha disponibilidade. Talvez o novo telefone de Baker possua outros recursos, e ele tem toda a liberdade de usá-los ou ignorá-los. Do meu ponto de vista, os engenheiros melhoraram de maneira considerável o que já estava bom e me deram a opção de adotar as mudanças ou ignorá-las. Admito que no começo o novo telefone era um pouco intimidador. Os botões pareciam estranhos e havia opções demais. Também não gostava de ter que ficar de pé, com vários colegas, ao redor de um representante da empresa telefônica que falava com rapidez sobre os recursos e usava um jargão que para ele era fácil e a respeito do qual tínhamos muitas dúvidas, mas éramos orgulhosos demais para perguntar. Acredito que boa parte de meus colegas acabou por aprender a usar um recurso de cada vez, assim como eu, passando horas trancados em seus escritórios, queimando as pestanas com o manual que era confuso e muitas vezes contraditório. Quando um de nós conseguia entender um daqueles recursos esotéricos, costumávamos falar a respeito durante o almoço e ficávamos felizes porque a pessoa afinal conseguira aprender. Do mesmo modo, todos sentiam vergonha quando era o único a não compreender algum daqueles detalhes herméticos.
Ter sentimentos ambivalentes quanto à evolução tecnológica não é algo recente. Lembro-me de que quando surgiram os telefones com teclas eu zombei deles. Por ingenuamente acreditar que o único propósito das teclas era completar com maior rapidez as chamadas, eu ridicularizava qualquer pessoa que não tivesse tempo de usar o disco mecânico para ligar para casa. Mas nessa época eu era jovem, o tempo parecia passar devagar, e os números de telefone eram bem mais curtos. Ainda estava maravilhado com o simples fato de poder discar um monte de números e fazer com que alguém atendesse em outro estado. Meu dedo se acostumou ao movimento nada natural, mas agradável, de discagem. Ficava me perguntando quem iria querer discar um telefone de maneira diferente ou mais rápida. Agora, depois de entrar em contato com o telefone de teclas, acho difícil e muitas vezes irritante ao extremo ter de girar o disco com o dedo em alguns aparelhos antigos que tenho em casa. Parece que preciso esperar uma eternidade até que o disco volte depois de chegar ao “9”, percorrendo um ângulo de mais de 270 graus.
Por que aquilo que em retrospecto se mostra uma óbvia vantagem tecnológica nos deixa ressabiados de início? Em parte, parece ser uma questão de familiaridade, pelo menos em relação a objetos inanimados aos quais nossas mãos se adaptaram. O surgimento de uma forma, às vezes acompanhada de novas funções, é ameaçador e invasivo. Afinal, um artefato tecnológico como o velho telefone negro com disco acabou obtendo status de ícone cultural. Sem pensar, podíamos usá-lo e vê-lo usado. Mas há muito ele deixou de chamar a atenção — mas basta um ator num filme discar um número de telefone com apenas seis dígitos sem trocar o dedo de buraco para que a verossimilhança da cena vá por água abaixo (a não ser, é claro, que o erro seja proposital). A introdução do telefone de teclas parecia ser o fim de tudo isso, e levamos certo tempo para reconhecer que ele havia nos trazido algumas vantagens. Os tons eletrônicos das teclas tornaram-se tão habituais quanto o modo hesitante com que o disco ia e voltava na discagem dos números, e às vezes até lembram a melodia de nossas músicas favoritas. Acabei por desenvolver certo prazer em apertar as teclas desse jeito staccato e, quanto mais rápido teclo, mais satisfeito fico. Os números de telefone passaram a ter uma configuração visual, consigo me lembrar de alguns apenas pelo padrão distinto formado quando meu dedo percorre as teclas. Minha senha do caixa automático do banco tem um padrão horizontal, enquanto o código para acessar as mensagens da secretária eletrônica é mais vertical; sem esses recursos mnemônicos visuais e físicos eu teria dificuldade para sacar dinheiro ou acessar minhas mensagens.
É claro que os sistemas telefônicos mais recentes também apresentam problemas, mas nada é perfeito. O desenvolvimento dos artefatos e suas infraestruturas — o hardware e o software, em linguagem computacional — de fato evolui por uma rota cujos marcos seqüenciais são: “bom”, “melhor” e “excelente”, mas esse último parece estar sempre no fim do arco-íris, tão ilusório quanto um paraíso perdido. O caminho em si com freqüência apresenta desvios, paradas temporárias, sendas erradas, retrocessos e acidentes. E quando a tecnologia é complexa e suas metas ambiciosas, a estrada que leva até o desempenho e a aceitação plenamente satisfatórios muitas vezes está cercada de dúvidas e críticas, com panes e acidentes. Às vezes, nem os designers ou os usuários de uma nova tecnologia de início a compreendem por inteiro, o que faz com que seu progresso seja lento, gerando grandes engarrafamentos.
Algumas das frustrações de Baker a respeito do telefone foram ecoadas recentemente em relação a diversos produtos eletrônicos. Um editorial da revista de comércio Design News apresentava a irritação do editor com produtos que na opinião dele deveriam ter um design melhor. O texto soou verdadeiro para vários leitores, quase todos designers ou engenheiros, que responderam com suas próprias listas de “produtos irritantes”. As embalagens foram citadas por muitos, que as achavam “eficientes demais” ou “impenetráveis”. Este é um problema que existe desde os primórdios, como no caso do predador que tem de rasgar a carne da sua presa, ou do habitante de uma ilha que precisa abrir um coco. Vimos que a lata passou a existir bem antes do surgimento de um abridor eficiente, e, hoje em dia, chegar até o alimento envolvido por tanta embalagem plástica pode ser muito frustrante e demorado para vários adultos hábeis em outras coisas, como se pode observar nos diversos vôos em que os passageiros tentam abrir um saquinho de amendoim. De fato, não há desculpa para os designers criarem embalagens tão seguras a ponto de os consumidores reclamarem delas.
Os controles nos equipamentos eletrônicos não deixam de ser um tipo de embalagem: se não tivermos a capacidade de domá-los, não conseguiremos usar o produto dentro da caixa-preta. Entre os leitores da Design News, a “reclamação mais universal” era em relação “às diferentes técnicas para programar relógios, despertadores e videocassetes”. Isso é sem dúvida compreensível: quem já não usou o método da tentativa de acerto e erro e já não pulou para cá e para lá sobre diversos fios para fazer com que determinado aparelho eletrônico funcionasse? Eu mesmo, quando consigo dominar alguns passos para fazer com que o despertador mostre direito às horas, ou que o videocassete grave e reproduza, raramente vou em frente para explorar os outros controles. Portanto, nunca abro por completo a embalagem para chegar aos recursos adicionais.
Apesar de nossas frustrações e dificuldades com os equipamentos eletrônicos, vamos em manadas até as lojas para comprá-los. Já em 1990, ¾ dos lares dos Estados Unidos possuíam fornos de microondas, e mais de 60% tinham videocassetes. As pessoas que não possuem tais produtos, quando não são ridicularizadas, ao menos constituem alvo de campanhas publicitárias em que mesmo as empresas fabricantes conseguem reconhecer os problemas de seus produtos imperfeitos. Uma dessas empresas, a Goldstar Electronics, ao lançar a campanha que ressaltava como seus produtos eram “fáceis de usar”, admitia que “a percepção de grande parte dos consumidores é de que os sofisticados produtos eletrônicos disponíveis no mercado são difíceis (se não impossíveis) de utilizar”. Portanto, desejava passar a imagem de que suas mercadorias eram “feitas de olho em pessoas de carne e osso”. A Goldstar, num desdobramento irônico para uma área industrial que parece lançar produtos cada vez mais complexos, queria diferençar suas mercadorias das de seus competidores mais conhecidos, afirmando que eram “menos sofisticadas” e mais fáceis de usar.
A função básica dos produtos eletrônicos — o que inclui todas as suas características especiais — quase nunca foi questionada. Espera-se que um relógio digital informe a data e as horas, que toque o alarme, e assim por diante. Um videocassete deve gravar programas, reproduzir fitas e permitir que gravemos algo enquanto assistimos a outro canal ou jantamos fora. Tais objetivos foram incorporados de maneira notória aos problemas de design, e a partir deles surgiram às soluções agora visíveis nas páginas dos catálogos e nas prateleiras das lojas. A variedade disponível, principalmente na configuração dos mostradores e dos controles, não passa de outra prova de que a forma não é determinada pela função. Aliás, como vimos diversas vezes, é a incapacidade de esses dispositivos desempenharem suas funções de modo perfeito que faz com que evoluam, a partir de suas falhas, até a “perfeição”. Este é, porém, um objetivo bastante relativo, pois no meio tempo os usuários irão se adaptar às imperfeições dos produtos existentes. Um objeto nunca pode ser visto em separado de quem o utiliza, mesmo durante sua evolução. O motivo por que os designers não acertam de primeira talvez seja mais compreensível que perdoável. Quer prestem menos atenção ao funcionamento de suas invenções, quer a familiaridade que têm com as entranhas eletrônicas de seus monstrinhos os deixe insensíveis às birras dos aparatos, existe o consenso partilhado por consumidores e críticos como Donald Norman (que disse que o “design usável” é “a nova fronteira competitiva”) de que as coisas quase nunca cumprem o que prometem. Norman é categórico em sua afirmação: “Tarjas com advertências e manuais de instruções grandes são sinal de fracasso, uma tentativa de remendar problemas que deveriam ter sido evitados já no começo por um design decente.” Ele tem razão, é claro, mas por que os designers podem ter sido tão cegos?
Se considerarmos o problema de criar o design de qualquer objeto, desde um clipe para papel até uma ponte, passando pelo forno de microondas, o objetivo principal precisa ser, é óbvio, fazer com que o produto desempenhe sua função primordial, seja ela prender papéis, cozinhar ou permitir que se atravesse um rio. É evidente que os designers irão primeiro se concentrar nesses elementos e, durante o processo, se acostumar com suas criações. Os projetistas originais dos clipes, por exemplo, sabem como é o arame que dobram primeiro em suas mentes, depois no papel e por fim com a ajuda de máquinas. Aprendem que alguns tipos de arame quebram quando dobrados em ângulos muito pequenos, e que outros não são maleáveis o suficiente para serem moldados. Com o tempo, acabam dobrando o tipo adequado de arame no formato específico que corresponde às metas (às vezes erradas) que eles mesmos se impuseram. No entanto, é bem mais provável que acabem com diversos arames em inúmeras configurações diferentes, como demonstram as muitas patentes, cada qual tentando salientar as vantagens que possuem em relação às outras.
A partir dessas configurações, seus parceiros no negócio, na fabricação e nas vendas irão selecionar uma para fazer e vender. Embora nunca se perca de vista o objetivo de como o produto final deve ser usado, as pessoas envolvidas em todo o processo de design ficam tão acostumadas e condescendentes com sua invenção que conseguem operá-la com uma facilidade e um cuidado quase impossível para os não-iniciados. Um ato que parece simples, como prender vários documentos com um novo tipo de clipe, é sempre mais fácil para o inventor do dispositivo que para o usuário de primeira viagem.
Mesmo se fizermos um esforço extra para submeter o design de um produto a um engenheiro que tenha mais em mente os fatores humanos, e cuja tarefa seja sugerir modificações para fazer com que o artefato seja fácil de usar, o sucesso da empreitada será tão completo quanto à capacidade que ele tem de antecipar as falhas do produto. Se os engenheiros, por exemplo, supõem de modo tácito que todos os usuários vão ser destros, talvez 10% da população tenha dificuldade em usar o produto. O sucesso depende muito da antecipação e eliminação das falhas, e é quase impossível prever todos os usos e abusos a que o produto estará sujeito até que de fato ele seja usado e abusado, não no laboratório, mas na vida real. Assim, artefatos recémcriados raramente chegam perto da perfeição, mas nós os compramos e nos adaptamos à sua forma porque eles cumprem, mesmo que de maneira imperfeita, a função que julgamos necessária. Quer seja a aceitação ou rejeição o destino de algum novo dispositivo ou sistema tecnológico, o processo evolutivo é composto de dados relativos e comparativos. Mesmo que Russell Baker tenha criticado os engenheiros por não deixarem em paz o que “está bom o suficiente”, o que é “bom o suficiente” depende, como sempre dependeu, de fatores subjetivos. De certo ponto de vista, a vida pré-histórica estava ótima para o homem e a mulher pré-históricos. E, aliás, os artefatos e a tecnologia que existiam na época desempenhavam um importante papel na definição da natureza. As ferramentas e os costumes pré-históricos eram (talvez até perfeitamente) adequados para se lidar com o mundo pré-histórico. O argumento de que os avanços tecnológicos eram necessários para que a civilização avançasse, na melhor das hipóteses, é tautológico, e, na pior das hipóteses, semelhante ao mito de que a necessidade é a mãe da invenção.
Afinal, o motor da evolução tecnológica talvez seja tão inexplicável quanto o da evolução natural. Isso não quer dizer que não exista algum tipo de dinâmica em ação, mas sugere que um tipo de processo evolutivo está envolvido de modo inextricável nos processos da vida e na existência. A tecnologia e seus artefatos subsidiários são concomitantes à existência humana e nos impelem a compreender sua natureza e também a nossa — necessariamente falhas e imperfeitas. Tal compreensão é mais acessível no plano microcósmico e microtemporal, onde uma coisa segue a outra de forma tão natural quanto o filho segue o pai. Ela é mais apurada quando soluciona os dilemas do famoso, do obscuro, do grandioso e do ínfimo, do aceito e do rejeitado, ao explicar ao mesmo tempo a criação e a divergência a respeito do sucesso em um mesmo sistema comum.
As diversas manifestações de fracasso, como fica evidente nos estudos de caso analisados neste livro, fornecem a base conceitual para compreender a forma evolutiva dos artefatos e como eles estão interligados com a tecnologia. É a percepção do fracasso na tecnologia disponível que impulsiona inventores, designers e engenheiros a modificar o que outros talvez considerem perfeitamente adequado, ou pelo menos utilizável. O que constitui um fracasso ou uma melhoria não é de todo objetivo, pois, na análise final, uma lista considerável de critérios, que vão da funcionalidade à estética, da economia à moral, podem vir a ter alguma influência. No entanto, cada aspecto deve ser julgado no contexto do fracasso, e este, embora mais facilmente quantificado do que o sucesso, sempre implica um pouco de subjetividade. O espectro da subjetividade talvez fique mais objetivo dentro dos limites da discussão disciplinar, mas quando diversos indivíduos e grupos juntam-se para discutir os critérios de sucesso e fracasso, o consenso pode ser algo bastante fugaz. É natural que, quanto mais simples o artefato e quanto menos critérios aplicarmos para julgá-lo, menos controvertida e estabelecida será sua forma. O clipe para papel, por exemplo, tão inofensivo e controlado, parece atrair mais a admiração que a ira dos críticos e colunistas de jornal, e parece ser aceito por quase todas as pessoas como uma pequena maravilha moderna.
Quem pensaria o contrário senão os próprios inventores? Mesmo assim, ao observarmos com atenção esse artefato tão pouco sofisticado em termos tecnológicos, descobrimos a essência de como até as coisas mais elaboradas evoluem. Um sistema complexo como uma usina nuclear, por outro lado, que possui diversos detalhes em todos os níveis e é julgada segundo inúmeros critérios, incluindo alguns bastante rígidos, é um péssimo manual de iniciação para a tecnologia. Mas quem não se importaria com uma usina de força? Um sistema telefônico está no meio-termo de complexidade e importância. Não interessa seu nível tecnológico se os mesmos princípios evolutivos governam esses artefatos e aqueles que surgirem no meio do caminho. Assim, entender mais a respeito de um deles nos permite compreender melhor (e controlar) a todos.
Seria a tecnologia sempre algo positivo, pelo menos em suas intenções sociais? A resposta mais simples é “não”, pois parece sempre ter existido entre nós aqueles que exploram a tecnologia da mesma maneira que exploram as pessoas. Assim como os mágicos há tempos empregam truques e engenhocas para enganar a platéia, os vendedores inescrupulosos muitas vezes abusam da tecnologia ou brincam com a confiança de suas vítimas na objetividade da tecnologia. O açougueiro que pressiona o prato da balança de carne com o dedo talvez esteja entre os exemplos mais grosseiros desse engodo; versões mais sofisticadas da mesma atitude existem desde o começo da história.
Há quase 2.500 anos, o autor peripatético de Mecânica se perguntou por que as balanças grandes eram mais precisas que as pequenas. Depois de responder à sua própria pergunta com uma explicação geométrica complicada, que envolvia as propriedades do movimento circular, esclareceu que alguns mercadores de tinta desonestos preferiam as balanças menores porque com elas seria mais fácil enganar o comprador: “É assim que os vendedores de tintura roxa montam suas balanças para enganar o comprador: colocam o cordão fora do centro e põem chumbo num dos braços da balança, ou então usam madeira [mais pesada] no lado que desejam inclinar.” Um pequeno desequilíbrio a favor do comerciante ficaria evidente num braço mais pesado das balanças maiores; desse modo, a balança menor era preferível caso o vendedor quisesse que seu embuste passasse despercebido.
Mas tais aberrações no uso da tecnologia não devem condená-la, assim como os criminosos não podem sentenciar toda a raça humana. Não que os designers e os engenheiros, por vezes a serviço de pessoas da estirpe daqueles mercadores de tinta, não cometam erros ou não façam julgamentos incorretos; eles de fato fracassam — mas todos estamos sujeitos a erros em tudo que fazemos. Todos nós já pegamos a estrada errada acreditando estar no caminho certo, e quando isso acontece, o melhor é reconhecer o erro o mais rápido possível, parar o carro na beira da estrada e consultar um mapa.
Mas todos sabemos como é mais fácil, ainda mais diante de outras pessoas, continuar na direção errada, em lugar de admitir o erro e tratar de corrigi-lo. Designers e engenheiros, que, afinal, são em primeiro lugar pessoas, podem estar sujeitos aos mesmos riscos, principalmente quando também sofrem de alguma cegueira tecnológica que torna difícil, se não impossível, enxergar os diversos níveis de um problema apresentado pelo design. Um público compreensivo e consciente da tecnologia envolvida é a melhor prova de fogo de um design problemático.
A capacidade que os seres humanos têm de se adaptar às imperfeições dos produtos talvez seja o fator determinante da forma final de muitos dos objetos que usamos, mesmo a contragosto. Apesar de toda a reclamação de Russell Baker a respeito do novo sistema telefônico, ele sem dúvida acabou se adaptando, e talvez até tenha passado a apreciar (sem escrever sobre isso) pelo menos um dos recursos que antes considerava estranho ou hermético.
Isso não significa que a tecnologia marcha adiante de modo inexorável, e que nós corremos o risco de ser deixados para trás se não a acompanharmos: em vez disso, pode-se dizer que a evolução da esmagadora maioria dos artefatos, tanto na forma quanto na função, é no fundo bem-intencionada e pensada para o bem comum. O próprio fato de que somos adaptáveis aos produtos e à tecnologia presentes em nosso cotidiano muitas vezes nos deixa resistentes às mudanças no ambiente que nos cerca, em especial quando envelhecemos e passamos a acumular as coisas com as quais nos acostumamos. Como os telefones antigos não possuíam recursos como redirecionamento de chamadas e secretária eletrônica, por exemplo, era necessário aceitar o fato de que havia o risco de perder alguma ligação, ou então tomar alguma medida para não perdê-la. Um repórter ou outra pessoa que dependesse muito do telefone poderia certificar-se de que as chamadas seriam atendidas durante sua ausência — por um colega, pela secretária, por um assistente ou até por uma secretária eletrônica. Não precisávamos de nada diferente. Mas quando novas invenções se tornam disponíveis, alguns de nós podemos de imediato ver as vantagens que trazem. Os recursos automáticos nos telefones mais recentes permitiram que mesmo um profissional free-lance que trabalha em casa tenha, num único aparelho telefônico, toda a comodidade de um escritório com funcionários e uma rede telefônica. No entanto, é sempre a geração jovem demais para se familiarizar com as coisas antigas, mas não tão jovem a ponto de não ter recursos financeiros, que costuma aceitar primeiro uma nova tecnologia. Quer fiquemos do lado dos críticos de mais idade ou da nova geração, a forma dos artefatos que terão impacto em nossas vidas é moldada de acordo com a percepção de alguém sobre as falhas dos artefatos já existentes. Há grande chance de que tal pessoa seja um engenheiro, um designer ou um inventor que observa o mundo do jeito peculiar aos críticos da tecnologia. Se tiver como produzir o protótipo de um artefato aperfeiçoado, se possuir o talento comunicativo ou o poder de persuasão para fazer com que um patrocinador possibilite a produção do protótipo, então o resto da humanidade talvez tenha a opção de escolher entre o antigo e o novo. Em alguns casos, a escolha não está em nossas mãos, pois os fabricantes podem ter seus próprios critérios a respeito do que constitui o fracasso e o aperfeiçoamento, e tais juízos incluem o lucro e o prejuízo. Assim, o que na opinião do público parece necessitar de melhoria talvez pareça pouco lucrativo para os fabricantes. As decisões para tornar algo mais leve, fino ou barato podem estar tanto baseadas na percepção de uma deficiência quanto na decisão de ajustar um relógio que não mostra as horas direito.
A evolução da forma começa com a percepção das falhas e se propaga por meio da linguagem dos comparativos. “Mais leve”, “mais fino”, “mais barato” são afirmações comparativas de que há uma melhoria, e a possibilidade de dizer que um novo produto possui tais qualidades influencia de maneira direta a evolução de sua forma. A competição é, por sua própria natureza, uma luta pela superioridade. Assim, os termos superlativos “mais leve”, “mais fino” e “mais barato” muitas vezes se tornam metas finais. Porém, como acontece com todos os problemas de design, quando há mais de uma meta, elas costumam ser incompatíveis. Portanto, o cristal mais leve e mais fino também pode ser o mais caro. Os limites à forma dos artefatos, contudo, também são definidos pelo fracasso, uma vez que pode ser difícil usar um produto de cristal muito leve e fino. Certa vez vi uma taça de água Orrefors ser quebrada quando um dos convidados a ofereceu ao filho pequeno. A criança, talvez acostumada a meter os dentes em potes de vidro ou copos plásticos, não atentou para a delicadeza da taça e fez o cristal se espatifar em diversos pedacinhos. O acidente foi tão repentino que assustou a criança e fez com que o vidro quebrado simplesmente caísse de sua boca. Nem sua boca nem sua percepção foram maculadas, mas a mãe ficou muito envergonhada, e minha esposa e eu ficamos com uma taça a menos em nosso jogo de cristal. A mãe da criança, é claro, ofereceu-se para repor a taça, e então encomendou outra. Quando a peça chegou, minha mulher percebeu de imediato que era mais pesada. E todas as reposições posteriores foram tão caras quanto às antigas, mas as peças nunca eram tão leves ou finas quanto às do presente original de casamento, que havia sido dado na época em que os cristais Orrefors eram feitos com o mínimo de espessura possível; as pessoas faziam os pedidos de reposição reclamando da fragilidade excessiva. Sem dúvida criaram-se taças mais leves e finas, porém, até os adultos precisavam ter muito cuidado para beber nelas, e lavá-las era uma operação delicada. O cristal era tão leve e fino que pousar uma taça de vinho meio inclinada sobre uma mesa não acolchoada era o suficiente para trincá-la. Deixar o cristal mais fino fazia com que a luz tivesse um efeito ainda mais bonito e delicado sobre o copo e seu conteúdo. No entanto, as taças teriam durabilidade tão pequena que quase sempre seriam mantidas na cristaleira, enquanto taças de água e vinho mais fortes permitiam que os comensais desfrutassem o jantar sem quebrar os cristais nem ficar apreensivos.
Se compreendermos o mundo do design como algo que engloba não só as coisas que podemos segurar nas mãos e operar, mas as organizações e sistemas que produzem e distribuem tais coisas, então podemos explicar quase todas as gerações e alterações de qualquer artefato ou sistema tecnológico como algo que reage às falhas reais ou imaginadas de seus antecessores. Mas já que até essas falhas são na verdade uma questão de grau e definição, o que constitui uma melhoria para uma pessoa pode ser uma piora para outra. Existem inúmeras patentes para coisas que eram consideradas novas e úteis por poucas pessoas além do próprio inventor e do examinador de patentes. Tais utensílios existiam como exemplos distintos apenas na mente, nos desenhos e talvez nos protótipos de algumas pessoas, mas eram reações às falhas anteriores tanto quanto os produtos mais bem-sucedidos. Jacob Rabinow descreveu a história do design da fechadura à prova de ladrões, invenção que sem dúvida corrigia uma deficiência das fechaduras existentes. Sua idéia para uma fechadura mais segura consistia em uma chave feita a partir de uma folha de metal bem fina, dobrada em um formato que empurrava as tranquetas somente até as posições corretas. As ferramentas típicas de quem arromba fechaduras, como grampos de cabelo, não funcionariam porque a espessura desses objetos empurraria as tranquetas para fora da posição certa. Rabinow obteve uma patente para a fechadura e outra para a chave, mas não conseguiu vender a idéia para nenhum fabricante, porque a chave tinha um formato muito “peculiar”. Ele repetia o ditado de Raymond Loewy a respeito dos designs “mais avançados e ainda assim aceitáveis”, ao dizer que os fabricantes tinham como lema “melhorar sempre, mas não mudar nada”.
A inércia do gosto comercial pode evitar que a forma das coisas mude em excesso ou rápido demais. Porém, não existem formas inalteráveis, e há muitos fracassos evidentes. Seja detectada pelo fabricante, pelo inventor ou pelo consumidor, a falha de um produto — se ele é leve, pesado, fino, grosso, barato, caro — como produto imaginado ou real irá estabelecer mudanças que acabarão por afetar, mesmo que da menor maneira possível, a forma do mundo ao nosso redor.
O próprio Thomas Edison, cujo recorde de 1.093 patentes levou a algumas das formas mais difundidas entre os artefatos modernos, ficou preso no ciclo da mudança tecnológica inadiável. Edison preferia o formato cilíndrico para as gravações de sons; e de fato era possível defender tal idéia como o desenvolvimento mais natural do mecanismo rotacional do primeiro fonógrafo. Quando seus concorrentes lançaram o disco achatado, que precisava de uma plataforma giratória e acabaria por distorcer o som à medida que o braço da agulha avançasse nas ranhuras do disco, Edison se opôs a ela. Mas quando os consumidores passaram a preferir os discos porque eles poderiam ser guardados sem ocupar muito espaço, Edison, que estava bastante empenhado na fabricação, criou um disco ainda melhor, com dois lados, e deixou o ato de guardá-los ainda mais eficiente. Ele não ficava satisfeito enquanto via defeitos nas invenções. Como escreveu certa vez em seu diário, “a inquietação é o mesmo que a insatisfação — e a insatisfação é a primeira necessidade do progresso. Mostre-me um homem plenamente satisfeito, e eu lhe mostrarei um fracassado”. O enorme número de artefatos existentes no mundo hoje é a garantia de que haverá ainda mais coisas num futuro próximo, pois praticamente cada objeto pode cair sob o escrutínio de alguém inquieto e insatisfeito, que não acredita que “bom o suficiente” é sinônimo de algo livre de defeitos. A atitude reacionária de deixar em paz o que é “bom o suficiente” torna-se inútil porque o próprio avanço da civilização é a história da sucessiva correção (às vezes excessiva) de erros, falhas e fracassos.
O “bom o suficiente” para uma pessoa talvez não o seja para outra, é claro. Os canhotos tiveram de aprender a viver num mundo em que são discriminados por maçanetas, carteiras escolares, livros, abridores de garrafa e inúmeros outros objetos do dia-a-dia. Eles precisam usar luvas de beisebol na mão errada se esquecerem suas próprias luvas em casa. Mas além das luvas de beisebol e de uma ou outra carteira escolar, são poucas as versões de artefatos para destros disponíveis também para canhotos, que simplesmente aprenderam a viver num mundo em que ser destro é a regra. Tampouco eles parecem sentir a necessidade premente de que sejam inventados objetos próprios para canhotos.
Entretanto, como vimos, os artefatos especializados não evoluem a partir das necessidades mais básicas, mas da observação idiossincrática das falhas nos objetos existentes. Assim, existem inventores e fabricantes que criaram objetos para canhotos, e estabelecimentos como a loja Anything Left Handed Limited, na Brewer Street, em Londres, têm à disposição catálogos que podem nos confundir com páginas que abrem da esquerda para a direita, e trazem a numeração de acordo com isso. Embora alguns objetos da loja, como os relógios que funcionam no sentido anti-horário, sejam mais divertidos que práticos, coisas como tesouras de jardinagem e conchas de sopa para canhotos são uma dádiva dos céus. Existe uma loja parecida em São Francisco, na Califórnia, onde a esposa de um amigo meu achou um canivete suíço para canhotos e o deu de presente ao marido. Sem saber que tal utensílio existia, ele explicou que há muito havia se acostumado com o modelo disponível, mas que estava ansioso para demonstrar como conseguia abrir as lâminas de seu novo canivete com os dedos da mão esquerda e como girava o abridor de garrafas no sentido contrário.
As facas de cozinha da Anything Left Handed têm cabos adaptados para a mão esquerda, e suas lâminas também são serrilhadas para se adaptar aos canhotos. Existem facas de mesa serrilhadas feitas da mesma maneira, assim como garfos de sobremesa com o dente cortante do lado mais apropriado para um canhoto. Cada objeto da loja corrige um problema ou uma chateação que os canhotos precisam enfrentar ao usar algo que foi criado, de modo deliberado ou sem querer, para os destros. Esse é um exemplo da maneira como todos os artefatos se diversificam e a tecnologia evolui, pois à medida que são usadas as coisas revelam suas falhas, ao menos para alguns de nós.
Embora inventores, designers e engenheiros nem sempre sejam os primeiros a enxergar os problemas com a tecnologia e os objetos que criam, são eles quem elaboram as soluções. E nós, enquanto isso, tendemos a aceitar que nosso mundo é imperfeito em termos tecnológicos e não ligamos muito para isso. Talvez até venhamos a modificar nosso comportamento para acomodar a tecnologia, como fizeram os canhotos ao se adaptarem aos utensílios feitos para destros — mas só até descobrirmos um artefato que foi aperfeiçoado e passarmos a usá-lo, felizes da vida.
Homem Comum
Philip Roth é conhecido por sua abordagem crua do sexo. Em Homem Comum, ele trata a morte dessa mesma forma, e o resultado é uma espécie de A Morte de Ivan Ilitch do século XXI. O romance breve prova que o escritor americano é um dos poucos autores contemporâneos que podem se bater em queda-de-braço com um gigante da literatura como Tolstoi.
Fraquezas da carne...Philip Roth é conhecido por sua abordagem crua do sexo. E ele trata a morte da mesma forma
Homem Comum (tradução de Paulo Henriques Britto; Companhia das Letras; 136 páginas; 31 reais), romance breve do americano Philip Roth recém-lançado no Brasil, é uma espécie de A Morte de Ivan Ilitch do século XXI. Na também breve obra-prima do russo Leon Tolstoi, publicada em 1886, um juiz moribundo percebe como sua vida foi vazia e convencional. No livro de Roth, um publicitário (e artista plástico frustrado) faz um percurso similar ao longo de sucessivas internações para tratar de problemas de saúde. Os médicos que o acompanham são mais competentes e mais bem equipados do que os charlatões que cuidam do pobre Ivan Ilitch, mas a conclusão básica de Homem Comum é igualmente desoladora (ou talvez ainda mais desoladora, já que Roth, um judeu secular, não acredita no consolo cristão que embalou a fase final de Tolstoi): qualquer sentido que se encontre na vida é fátuo diante do fim inescapável.
Aos 74 anos, Roth é um dos poucos escritores contemporâneos que podem se bater em queda-de-braço com um gigante do porte de Tolstoi. Não será exagero dizer que seus vastos painéis da vida americana – como a trilogia formada por Pastoral Americana, Casei com um Comunista e A Marca Humana – são parentes espirituais da radiografia social realizada por Tolstoi em livros como Ana Karenina. Não, o adultério não tem mais o poder de perturbar a ordem social, como acontecia nesses clássicos do século XIX. Mas, pelo menos desde o escandaloso sucesso de O Complexo de Portnoy, de 1969, Roth descobriu outra força motriz para sua ficção, um poder mais básico e incômodo (especialmente para o puritanismo americano): o sexo. Em Homem Comum, a carne fraca representa ao mesmo tempo liberdade e danação. A felicidade pode ser um momento de amor ao ar livre, na praia, com Phoebe, a única mulher com quem o protagonista estabelece uma conexão humana verdadeira. Mas é a irresistível atração sexual por outras mulheres – em especial a modelo Merete – que vai arruinar seu casamento com Phoebe.
O sexo é sobretudo uma imposição do corpo – como a doença e a velhice. Homem Comum acompanha com minudência obsessiva, quase hipocondríaca, o histórico médico do personagem, de uma trivial operação de hérnia na infância à intervenção cardíaca que causará sua morte (anunciada desde o início do livro, na magistral cena de seu enterro). Acossado por distúrbios variados, o protagonista nutre um ressentimento mesquinho em relação à saúde inabalável do irmão mais velho, Howie.
As mulheres, os filhos, as amantes, os colegas de trabalho do protagonista – todos contam com nomes próprios. Só o "homem comum" não tem essa distinção. O título em inglês, Everyman, vem de uma peça anônima do século XV, um drama moral em que um homem comum reencontra seus valores cristãos depois de uma conversa com a Morte. Roth não oferece uma moral tão simplória. Mas Homem Comum tampouco é um livro amoral. Fica a sugestão de que as escolhas que o personagem faz são determinantes para o vazio que assombra o seu fim. Phoebe ou Howie poderiam estar ao seu lado no hospital, no último momento, se ele não os houvesse afastado com sua traição ou sua atitude fria. Seria um consolo pequeno, claro. Depois do fim, somos todos comuns e sozinhos.
Um morto comum
"A última pessoa a se aproximar do caixão foi à enfermeira, Maureen. Quando deixou que a terra escorresse lentamente por entre os dedos da mão, o gesto pareceu o prelúdio de um ato carnal. Não havia dúvida de que aquele homem era alguém que tivera outrora alguma importância para ela. E assim terminou. Em todo o estado, naquele dia, tinha havido quinhentos funerais como este, rotineiros, normais. (...) É justamente o que há de normal nos funerais que os torna mais dolorosos, mais um registro da realidade da morte que avassala tudo."
Trecho de Trecho de Homem Comum, de Philip Roth
Em torno da sepultura, no cemitério malcuidado, reuniam-se alguns de seus ex-colegas de trabalho da agência publicitária nova-iorquina, relembrando sua energia e originalidade e dizendo a sua filha, Nancy, como fora divertido trabalhar com ele. Havia também pessoas que tinham vindo de carro de Starfish Beach, a comunidade de aposentados na costa de Nova Jersey onde ele morava desde o Dia de Ação de Graças de 2001 - os idosos que recentemente tinham sido seus alunos num curso de pintura. Vieram também os dois filhos, Randy e Lonny, homens de meia-idade, filhos do turbulento primeiro casamento, que eram muito próximos à mãe e que, em conseqüência disso, do pai conheciam pouco de bom e muito de péssimo, e só estavam ali por obrigação, mais nada. O irmão mais velho dele, Howie, e sua cunhada também estavam presentes, tendo vindo da Califórnia de avião na véspera; e também uma de suas três ex-esposas, a do meio, a mãe de Nancy, Phoebe, uma mulher alta, magérrima, de cabelo branco, cujo braço direito pendia inerte ao longo do corpo. Quando Nancy lhe perguntou se ela queria dizer alguma coisa, Phoebe balançou a cabeça, tímida, mas logo em seguida começou a falar em voz baixa, uma fala um pouco arrastada. "É muito difícil de acreditar. Fico lembrando o tempo todo dele nadando na baía - só isso. É o que vejo, ele nadando na baía." E mais Nancy, que havia negociado com a agência funerária e telefonado para as pessoas que compareceram ao enterro, para que não estivessem presentes apenas ela, sua mãe, o irmão e a cunhada dele. Havia uma única pessoa presente que não tinha sido convidada, uma mulher atarracada com um rosto redondo e simpático, de cabelo pintado de ruivo, que simplesmente apareceu no cemitério e apresentou-se como Maureen, a enfermeira particular que havia cuidado dele após a cirurgia de coração, anos antes. Howie lembrava-se dela, e foi dar-lhe um beijo no rosto.
Nancy disse a todos: “Eu queria começar falando alguma coisa a respeito deste cemitério, porque descobri que o avô do meu pai, meu bisavô, não apenas está enterrado na parte mais antiga, ao lado de minha bisavó, como também foi um dos seus fundadores, em 1888”. A associação que financiou e construiu este cemitério era formada pelas sociedades funerárias das organizações beneficentes e congregações judaicas dos condados de Union e Essex. Meu bisavô era dono de uma pensão em Elizabeth, que recebia principalmente imigrantes recém-chegados, e ele se preocupava muito com o bem-estar deles, mais do que se espera de um dono de pensão. É por isso que ele estava entre os que compraram a terra e aplainaram o terreno e fizeram o tratamento paisagístico, é por isso que atuou como primeiro diretor do cemitério. Na época, era relativamente jovem, mas tinha muito vigor, e o nome dele é o único que assina o documento em que está especificado que o cemitério se destinava a 'enterrar os sócios falecidos de acordo com as leis e os rituais do judaísmo'. Como vocês podem ver, a manutenção dos túmulos, da cerca e dos portões não é mais como deveria ser. Há coisas apodrecidas e despencadas, os portões estão enferrujados, as trancas desapareceram, houve vandalismo. Com o tempo, o cemitério ficou muito próximo ao aeroporto, e o ruído distante que vocês estão ouvindo é do tráfego constante dos carros na rodovia expressa de Nova Jersey. Naturalmente, de início pensei nos lugares realmente bonitos em que meu pai poderia ser enterrado, os lugares onde ele e minha mãe iam nadar quando eram jovens, as praias que ele freqüentava. No entanto, por mais triste que eu fique quando olho à minha volta e vejo toda essa deterioração - vocês provavelmente também sentem o mesmo, e talvez até se perguntem por que é que estamos reunidos num cemitério tão maltratado pelo tempo -, queria que meu pai ficasse junto das pessoas que o amaram e das quais descendeu. Ele amava seus pais, e é importante que fique perto deles. “Eu não queria que ficasse em outro lugar, sozinho”. Nancy permaneceu em silêncio por um momento para controlar as emoções. Uma mulher de trinta e poucos anos, de rosto suave, de uma beleza simples, tal como sua mãe outrora, ela não parecia de modo algum uma pessoa investida de autoridade, nem mesmo corajosa; mais parecia uma menina de dez anos sem saber o que fazer. Virando-se para o caixão, pegou um punhado de terra e, antes de lançá-lo sobre a tampa, disse com simplicidade, ainda com um ar de menina perplexa: "Pois é, é isso. Não há mais nada que a gente possa fazer, papai". Então lembrou-se da máxima estóica de seu pai, de tantos anos atrás, e começou a chorar. "Não há como refazer a realidade", disse ela ao pai. "O jeito é enfrentar. Segurar as pontas e enfrentar."
O próximo a jogar terra sobre a tampa do caixão foi Howie, a quem ele cultuava quando os dois eram meninos e que, em troca, sempre o tratara com carinho e afeto, pacientemente ensinando-o a andar de bicicleta, a nadar e a praticar todos os esportes em que ele próprio se destacava. Parecia ainda capaz de correr com uma bola de futebol americano até o meio de campo, e já estava com setenta e sete anos. Jamais fora hospitalizado e, apesar de irmão de seu irmão, permanecera triunfalmente saudável durante toda a vida.
Sua voz estava rouca de emoção quando ele sussurrou para a mulher: "Meu irmão mais novo. Isso não faz sentido". Então dirigiu-se a todos os presentes. "Vamos ver se eu consigo. Vamos falar sobre esse cara. O meu irmão..." Fez uma pausa para organizar as idéias e falar coisa com coisa. O jeito de se exprimir e o tom agradável de sua voz eram tão parecidos com os do irmão que Phoebe começou a chorar, e mais que depressa Nancy tomou-lhe o braço. "Nos últimos anos", disse Howie, olhando para a sepultura, "ele teve problemas de saúde, e também estava solitário - um problema também muito sério. A gente conversava pelo telefone sempre que podia, se bem que, quando se aproximou o final da vida, ele tenha se afastado de mim, por motivos que nunca ficaram claros. Desde o tempo do colegial, ele sentia um impulso irresistível de pintar, e depois que se aposentou da firma de publicidade, onde teve muito sucesso, primeiro como diretor de arte e, após ser promovido, como diretor de criação - depois de toda uma vida trabalhando como publicitário, ele pintou praticamente todos os dias de todos os anos que lhe restaram de vida. Dele podemos dizer o que certamente foi dito por todos aqueles que amavam quase todos os que estão enterrados aqui: ele deveria ter vivido mais. Deveria, sim." Após um momento de silêncio, a expressão de dor e resignação em seu rosto foi substituída por um sorriso melancólico. "Quando entrei para o colegial e comecei a fazer treinamento esportivo na parte da tarde, ele assumiu as tarefas que antes era eu que fazia para meu pai depois das aulas. Ele adorava, com apenas nove anos de idade, levar os diamantes num envelope no bolso do paletó, ir de ônibus a Newark, onde o cravador, o gemólogo, o lapidário e o relojoeiro, nosso pai, ficavam cada um sentado em seu cubículo, lá na Frelinghuysen Avenue. Essas viagens davam um prazer imenso àquele menino. Tenho a impressão de que foi ao ver os artesãos trabalhando sozinhos naqueles lugares espremidos que meu irmão teve a idéia de usar as mãos para criar obras de arte. Creio que foi também ao examinar as facetas dos brilhantes através da lupa de meu pai que ele sentiu vontade de fazer arte." De repente Howie foi dominado por um riso, uma rápida trégua no meio daquela tarefa, e disse: "Eu era o irmão convencional. Em mim, os brilhantes despertaram a vontade de ganhar dinheiro". Depois retomou o fio da meada, voltando o olhar para a ampla e ensolarada janela da infância. “Nosso pai punha um pequeno anúncio no Elizabeth Journal uma vez por mês”. Na época de festas, entre o Dia de Ação de Graças e o Natal, ele mandava publicar o anúncio toda semana. 'Troque seu relógio velho por um novo.' Todos aqueles relógios velhos que se acumulavam - a maioria já sem conserto - eram jogados numa gaveta nos fundos da loja. Meu irmãozinho ficava horas sentado ali, fazendo os ponteiros andar e ouvindo o tique-taque dos que ainda andavam, examinando cada mostrador, cada estojo. Era disso que ele gostava. Cem, duzentos relógios velhos, a gaveta inteira provavelmente não valia mais que dez dólares, mas para ele, com o olho de artista que já estava desenvolvendo, a sala dos fundos era um baú de tesouro. Pegava aqueles relógios e punha no pulso - sempre andava com um relógio tirado daquela gaveta. Um dos que ainda funcionavam. E os que queria fazer funcionar porque gostava da cara deles, esses ele tentava consertar, mas não conseguia - no mais das vezes, ficavam piores ainda. Mas, enfim, foi assim que ele começou a usar as mãos em tarefas meticulosas. Meu pai sempre tinha duas moças recém-saídas do colegial, adolescentes ou de vinte e poucos anos, que o ajudavam no balcão da loja. Moças simpáticas e boazinhas de Elizabeth, bem-educadas, decentes, sempre cristãs, principalmente católicas irlandesas, filhas e irmãs e sobrinhas de empregados da fábrica de máquinas de costura Singer, ou da companhia de biscoitos, ou do cais do porto. Ele achava que a presença daquelas mocinhas cristãs bem-educadas fazia os fregueses se sentirem mais em casa. Quando um freguês pedia, as moças experimentavam as jóias, atuavam como modelos para eles, e às vezes a gente tinha sorte e vendia. Meu pai dizia que, quando uma moça bonita usa uma jóia, as outras mulheres ficam achando que se usarem a mesma jóia vão ficar tão bonitas quanto ela. Os trabalhadores do cais do porto que vinham comprar alianças de noivado ou de casamento às vezes tinham a temeridade de segurar a mão da vendedora para examinar a jóia mais de perto. Meu irmão também gostava de ficar com aquelas moças, muito antes de ter idade para entender por que é que a presença delas lhe dava tanto prazer. Ele as ajudava a esvaziar a vitrine e os mostruários no final do expediente. Era capaz de fazer qualquer coisa pra ajudá-las. Eles tiravam da vitrine e dos mostruários quase tudo, só ficavam as peças mais baratas, e logo antes de fechar a loja o menininho abria o cofre grande da sala dos fundos com o segredo que meu pai já lhe havia confiado. Era eu que antes fazia todas essas tarefas, e eu também tentava me aproximar o máximo das garotas, especialmente de duas irmãs louras que se chamavam Harriet e May. Ao longo dos anos foram muitas, Harriet, May, Annmarie, Jean, e mais Myra, Mary, Patty, e Kathleen e Corine, e todas elas gostavam daquele menino. A Corine, que era muito bonita, instalava-se na bancada da sala dos fundos no início de novembro, e ela e meu irmão endereçavam os catálogos que a loja mandava imprimir e enviava a todos os clientes antes do período de festas, quando meu pai abria a loja seis noites por semana e todo mundo se matava de tanto trabalhar. Se a gente dava ao meu irmão uma caixa de envelopes, ele conseguia contá-los mais depressa que qualquer um, porque os dedos dele eram muito ágeis e ele contava os envelopes de cinco em cinco. Eu ia à sala dos fundos dar uma olhada, e não dava outra - lá estava ele a se exibir pra Corine, contando envelopes. Era impressionante como gostava de fazer tudo o que devia ser feito para ser o filho confiável do joalheiro! Era este o elogio favorito de nosso pai: 'confiável'. Durante muitos anos, ele vendeu alianças para os irlandeses, alemães, eslovacos, italianos e poloneses de Elizabeth - em sua maioria, operários jovens e sem dinheiro. Muitas vezes, depois que ele fazia a venda, nós éramos convidados, toda a família, para o casamento. As pessoas gostavam do meu pai - ele tinha senso de humor, mantinha os preços baixos e vendia fiado pra qualquer um; e assim nós íamos, primeiro à igreja, depois à festa animada. Veio a Depressão, veio à guerra, mas enquanto isso as pessoas se casavam, as moças trabalhavam no balcão, e a gente ia de ônibus a Newark com centenas de dólares em diamantes guardados em envelopes nos bolsos de nossos casacos de lã. Em cada envelope nosso pai anotava as instruções para o cravador ou o gemólogo. Havia um cofre Mosley de um metro e meio de altura, com fendas nas laterais onde se encaixavam as bandejas de jóias que a gente guardava cuidadosamente todas as noites e retirava todos os dias de manhã... “E tudo isso era o cerne da vida de meu irmão como um bom menino.” Os olhos de Howie fixaram-se no caixão outra vez. "E agora, o quê?", perguntou ele. "Acho melhor ficar por aqui. Eu poderia continuar, lembrar ainda mais coisas... Mas por que não lembrar? O que é que tem derramar mais um litro de lágrimas, entre familiares e amigos? Quando nosso pai morreu, meu irmão me perguntou se eu me incomodava se ele ficasse com o relógio dele. Era um Hamilton, feito em Lancaster, Pensilvânia, e segundo o perito, o patrão, era o melhor relógio já feito neste país. Sempre que vendia um Hamilton, nosso pai dizia ao freguês que ele havia feito a melhor escolha. 'Veja só, eu mesmo uso um. Um relógio muitíssimo respeitado, o Hamilton. A meu ver', dizia ele, 'é o melhor relógio feito nos Estados Unidos, de longe.' Custava setenta e nove dólares e cinqüenta centavos, se não me falha a memória. Naquele tempo os preços todos terminavam com cinqüenta centavos. O Hamilton tinha uma tremenda reputação. Era mesmo um relógio de classe, meu pai adorava o dele, e, quando meu irmão disse que queria ficar com ele, fiquei felicíssimo. Ele poderia ter escolhido a lupa e o estojo de carregar diamantes de nosso pai. Era um estojo de couro já gasto que ele levava no bolso do casaco sempre que saía da loja a trabalho: dentro tinha uma pinça, umas chaves de fenda minúsculas e a escala, uma série de pequenos aros para medir o tamanho de uma pedra redonda, e os papeizinhos brancos dobrados pra guardar diamantes soltos. Eram coisas pequenas e belas, importantes para ele, sempre perto das mãos ou do coração dele, e no entanto resolvemos enterrar a lupa e o estojo com tudo o que havia dentro junto com nosso pai. Ele sempre levava a lupa num dos bolsos e os cigarros no outro, por isso enfiamos a lupa dentro da mortalha. Lembro de meu irmão dizendo: 'Na verdade, a gente devia mesmo era pôr no olho dele'. Para vocês verem o que a dor faz com a gente. Nós ficamos atordoados. Não sabíamos o que mais fazer. Certo ou errado, foi isso que achamos que tínhamos que fazer. Porque essas coisas não apenas pertenciam a ele - elas eram ele... Para terminar a história do Hamilton, o velho Hamilton do meu pai, que a gente dava corda todos os dias e puxava o pino para poder mexer nos ponteiros... meu irmão usava esse relógio dia e noite, menos quando ia nadar. Só o tirou do pulso em caráter definitivo há quarenta e oito horas. Ele o entregou à enfermeira para que ela o guardasse enquanto estava sendo operado - foi à operação que o matou. “No carro, a caminho do cemitério hoje de manhã, minha sobrinha Nancy me mostrou que tinha colocado mais um elo na pulseira, e agora é ela que está usando o Hamilton.”
Então vieram os filhos, homens de quarenta e muitos anos que, com seus cabelos negros e luzidios, seus olhos negros eloqüentes e o sensual volume de suas bocas largas e idênticas, eram iguaizinhos ao pai (e ao tio) na idade deles. Homens bonitões, já começando a engordar, que, ao que parecia, eram tão unidos quanto eram irremediavelmente rompidos com o pai. O mais moço, Lonny, foi o primeiro a se aproximar da sepultura. Mas, depois que pegou um torrão de terra, todo seu corpo começou a tremer, a sacudir-se, dando a impressão de que ele estava prestes a vomitar com violência. Fora acometido por uma onda de sentimento pelo pai, um sentimento que não era de antagonismo, mas que o antagonismo o impedia de manifestar. Quando abriu a boca, dela só saiu uma série de sons sufocados, grotescos, como se a emoção que o dominava fosse algo que jamais o deixaria em paz. Seu estado era tão deplorável que Randy, o filho mais velho, mais decidido, o filho mais crítico, imediatamente veio salvá-lo. Tirou de sua mão o torrão de terra e jogou-o em cima do caixão pelos dois. E não teve nenhuma dificuldade em falar quando chegou sua vez. "Dorme em paz, papai", disse Randy, e era aterrador constatar que não havia em sua voz o menor toque de ternura, dor, amor ou perda.
A última pessoa a se aproximar do caixão foi à enfermeira, Maureen, que parecia ser uma batalhadora, alguém que tinha familiaridade com a vida tanto quanto com a morte. Quando deixou, com um sorriso, que a terra escorresse lentamente por entre os dedos da mão entreaberta, caindo sobre o caixão, o gesto pareceu o prelúdio de um ato carnal. Não havia dúvida de que aquele homem era alguém que tivera outrora alguma importância para ela.
E assim terminou. Não se chegara a nenhuma conclusão. Todos tinham dito o que tinham a dizer? Não, e ao mesmo tempo é claro que sim. Em todo o estado, naquele dia, tinha havido quinhentos funerais como este, rotineiros, normais e, tirando os trinta segundos inesperados proporcionados pelos filhos - e tirando a ressurreição efetuada por Howie, com tamanha precisão, do mundo inocente que existia antes da invenção da morte, a vida perpétua naquele éden criado pelo pai, um paraíso com apenas cinco metros de fachada e doze de profundidade, disfarçado de joalheria tradicional -, nem mais nem menos interessante que os outros. Por outro lado, é justamente o que há de normal nos funerais o que os torna mais dolorosos, mais um registro da realidade da morte que avassala tudo.
Minutos depois, todos já haviam ido embora - cansados, chorosos, deixando para trás a atividade menos atraente a que se entrega a espécie humana - e ele ficou só. É claro que, tal como ocorre quando qualquer pessoa morre, embora muitos estivessem sofrendo, outros permaneciam indiferentes, ou se sentiam aliviados, ou então, por motivos bons ou maus, estavam na verdade satisfeitos.

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